Projeção em termos não técnico é a avaliação pessoal que
fazemos de outrem tendo como mecanismo avaliativo nossa própria subjetividade e
experiência vivencial. Essa tendência não é rarefeita no sistema de avaliação e
decisão do homem, ao contrário é universal e integralizadora. Ou seja, quando
avaliamos algo ou alguém temos a inclinação de fazê-lo a partir de nossos conhecimentos,
experiências e vivencias. De fato, a parte mais significativa de nossas
escolhas brotam do chão objetivo de nosso contexto existencial.
Isto acontece
porque nossa leitura da realidade, nossa concepção de mundo (cosmovisão) como
superestrutura fundante de nosso comportamento é construída não só por
marcadores objetivos; mas, sobretudo, por subjetivos que em interconexão
constantes se acham desde a infância, isso é colocado de modo admirável pelo psicólogo
americano Mark Baker: A solida base de nossa visão de mundo e o grau de sua
profundidade são formados na infância. Essa visão é depois elaborada e
aperfeiçoada, mas em essência não se altera.
Não é sem
motivo então que nós ao nos defrontarmos com a tentação de Jesus não a concebemos
em termos reais e concretos, quando muito uma metáfora que intenciona comunicar
uma experiência espiritual mais profunda. A explicação disto se dá pelo fato de
que ao enfrentarmos a ideia da tentação a apreendemos em termos projetivos, ou
seja, em níveis de nossas próprias experiências, realizando uma interpretação
interpolada e analógica que toma como ponto de lançamento a nossa própria ideia
e vivenciação da tentação. Qual o problema com isso? Todo, levando-se em
consideração que a tentação humana em linhas gerais é subproduto de nossas
deformidades e paixões (epithymías) pecaminosas como declara perfunctoriamente
Tiago: 13 Ninguém, sendo tentado, diga:
De Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém
tenta. 14 Mas cada um é tentado, quando
atraído e engodado pela sua própria concupiscência. (Tg 1.12-15). Claro que
neste relevo e por meio desses vetores é impossível se quer conceber a
possibilidade de Jesus ter sido tentado.
Entretanto,
se nos detivermos um pouco mais nesta temática da tentação de Jesus inibindo a
todo custo uma interpretação projetiva, ao arrepio, veremos de modo mais nítido
que não há motivos consistentes, desde que se respeitem as linhas limítrofes
postas pelo dogma da unipersonalidade do Cristo; isto é, sua divindade e
humanidade perfeita (vero hominem et vero Dei) como enunciada na fórmula de
Calcedônia para não se interpretar a
passagem da assim chamada tentação de Cristo como uma provação real.
Minhas convicções
estão ancoradas na análise exegética da passagem que apresenta a expressão peirasthênai raiz peirazw como significando no uso comum e natural (usus loquendis)
do Novo Testamento sempre: provar, testar, tentar.
Óbvio que sei que pode se objetar tal
conclusão utilizando o uso feito pelo salmista da expressão provar,
sugerindo a tradução alternativa: provocação: “9 quando vossos pais me desafiaram e me puseram à prova, embora
tivessem visto meus grandes feitos!” (Sl 95.9). Bem em primeiro plano é preciso
reconhecer que o argumento do Salmo 95.9 tem lá sua pertinência, porém, não é
nem conclusivo nem tão pouco insuperável, visto que a expressão ali usada nissûnî raiz nasah segundo o The Analitical Hebrew and Chaldee lexicon de
Davidson denota prioritariamente: provar, testar, tentar, vigiar. O que
é particularmente importante aqui é que essa tradução é majoritariamente
massiva em todo Velho Testamento.
Surgi,
então, a indagação de que em que sentido Deus seria provado pelos israelitas?
Bem, se enquadrarmos a passagem do Salmo na sua moldura contextual que nos é
ofertada em Números 14.20-24, fica mais que claro que essa provação era o
teste, o exame impingido pelos israelitas a Deus face às dificuldades que eles
passavam no deserto, como se suas promessas estivessem sob judice, como se Ele
houvesse falhado ou coisa equivalente, essa era a prova, o teste que o salmista
se reporta ao aludir a essa eventuação histórica, não estou sozinho, notem que
essa é a abordagem feita por Calvino, ao comentar o citado salmo: No todo,
considero o sentido da passagem como sendo o seguinte: Vossos pais me tentaram,
embora tivessem provas sobejas percebidas por evidencias claras e inegáveis de
que eu era o seu Deus; sim embora minhas obras fossem postas diante de seus
olhos de forma muito clara.
Além do mais é
forçoso lembrar que a experiência da tentação vivida por Jesus está enfronhada
na estrutura sacerdotal-representativo. Isto é, ao ser provado, Jesus estava na
condição de mediador (mesitês) e cabeça pactual dos eleitos como o segundo
Adão, sinceramente essa correspondência entre Jesus e Adão como cabeça da raça
é grandemente minimizada, mas surpreendentemente destacada por Paulo em Romanos:
“12 Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e
pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que
todos pecaram. 13 Porque até à lei
estava o pecado no mundo, mas o pecado não é imputado, não havendo lei. 14 No entanto, a morte reinou desde Adão até
Moisés, até sobre aqueles que não tinham pecado à semelhança da transgressão de
Adão, o qual é a figura daquele que havia de vir. 15 Mas não é assim o dom gratuito como a
ofensa. Porque, se pela ofensa de um morreram muitos, muito mais a graça de
Deus, e o dom pela graça, que é de um só homem, Jesus Cristo, abundou sobre
muitos. 16 E não foi assim o dom como a
ofensa, por um só que pecou. Porque o juízo veio de uma só ofensa, na verdade,
para condenação, mas o dom gratuito veio de muitas ofensas para
justificação. 17 Porque, se pela ofensa
de um só, a morte reinou por esse, muito mais os que recebem a abundância da
graça, e do dom da justiça, reinarão em vida por um só, Jesus Cristo. 18 Pois assim como por uma só ofensa veio o
juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de
justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação de vida. 19 Porque, como pela desobediência de um só
homem, muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um muitos serão
feitos justos. 20 Veio, porém, a lei
para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a
graça; 21 Para que, assim como o pecado
reinou na morte, também a graça reinasse pela justiça para a vida eterna, por
Jesus Cristo nosso Senhor.” ( Rm 5.12-21).
E na
sua primeira carta aos coríntios: 45 Da
mesma forma, está escrito: “Adão, o primeiro homem, foi feito alma vivente”; o último Adão, no entanto, é espírito vivificante! 46
Assim, não foi o espiritual que veio primeiramente, mas sim o natural; depois
dele então, chegou o espiritual. 47 O primeiro homem foi formado do pó da
terra, o segundo homem é dos céus. 48 Os que são da terra são semelhantes ao
homem terreno; os que são dos céus, ao homem celestial. 49 Assim como obtivemos
a imagem do homem terreno, receberemos de igual modo a imagem do homem
celestial (1 Co 15.45-49).
É por
conta desse liame histórico, redentivo e existencial entre Adão e Cristo, que ao
meu sentir não se pode esvair o teste que Jesus nessa condição passou, pois, se
o primeiro Adão foi de modo real testado, provado, porque o segundo não seria?
Se na verdade Jesus não foi tentado como Adão o foi, como poderia ser ele realmente
nosso legitimo representante e mediar com eficácia redentiva à situação imposta
pelo pecado principiado por Adão na categoria de nosso cabeça pactual e
atualizado em nossa experiência existencial presente?
Posso
ainda aditar à tese da real tentação de Jesus, o argumento de sua plena
humanidade, ou seja, assim como os homens são tentados nessa existência, ele
como homem perfeito também o foi, apenas, divergindo que por causa da sua
impecabilidade Jesus se sagrara vitorioso sobre a tentação. Charles Hodge em
sua Teologia Sistemática percebeu
claramente a correspondência entre a tentação de Cristo e sua plena humanidade:
“Sendo também homem, pôde compadecer-se de nossas debilidades, foi tentado
como nós à nossa semelhança, excetuando o pecado (...)”.
Dentro deste
quadro da obra sacerdotal de Jesus sustentada pela sua plena e perfeita
humanidade que o autor da carta aos hebreus enquadra o processo de tentação que
Jesus passou, e para falar a verdade penso ser esse texto uma boa chave hermenêutica
para a discussão em questão, pois, ele destaca ao que já estabelecemos o fato
de que a tentação de Cristo foi em termos de nossa experiência humana, isso é
presente na expressão kath’homoiótêta (como nós): 14 Visto que temos um grande sumo sacerdote, Jesus, Filho de Deus, que
penetrou nos céus, retenhamos firmemente a nossa confissão. 15 Porque não temos um sumo sacerdote que não
possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém, um que, como nós, em
tudo foi tentado, mas sem pecado. 16
Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar
misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno.( Hb
4.14-16).
De modo final, nem sempre a tentação deve
estar conectada a capitulação diante do pecado ou fruto das pulsões, desejos
pecaminosos internalizados em nossa subjetividade, coisa que Jesus não experimentou,
mas pode ser biblicamente entendida como uma prova a ser superada sem
coligimentos com a vontade divina, o que de fato foi o que ocorreu com Jesus em
sua ‘tentação’, comungo das notas imprimidas na avaliação da tentação impressa
pela Enciclopédia da Bíblia Cultura Cristã: Muitas pessoas, ao confundirem
tentação com pecado, são perturbadas pelo pensamento de que Jesus poderia ser
tentado. Deve-se reconhecer que as tentações são apelos à necessidade e desejos
legítimos. O erro está na sugestão de que esses desejos deveriam ser
satisfeitos de uma forma contraria à vontade de Deus.
Quero
concluir assentando que Jesus foi no sentido mais profundo que o termo possa
abrigar tentado, provado e testado por Satan (Mt 4.1-11; Mc 1.12-13;Lc 4.1-13)
neste ponto revisando a tentação sofrida por Adão no Éden (Gn 3). Porém, com um
desfecho diferente, Ele venceu, com sua vitória adquiriu para seus
representados o direito a árvore da vida, a vida eterna que já provamos como
entrada, primícias do por vir nessa vida por meio da fé (Jo 5.24; 2 Co 5.1-9;
Hb 12.23) materialmente no céu e total e gloriosamente no seu retorno e
consumação da Redenção (Ap 22.1-5). A Ele toda adoração agora e por toda a
eternidade, no céu e na terra. Amém. SDG
Rev.
Marcus King Barbosa
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