A travessia do Jaboque (maa’bar Iaboque) foi um fato histórico,
geográfico e temporal vivido pelo patriarca Jacó. Representa dentro do âmbito
da trajetória existencial do patriarca sua fuga da exploração de Labão, seu
sogro para o retorno divinamente orientado para sua família e o cumprimento da
promessa divina sobre sua vida. Ao mesmo tempo, isso também representava um
adiado, mas inevitável confronto com seu irmão e o motivo nuclear da sua fuga
passada; isto é, o roubo do direito de primogenitura por meio de um embuste, de
um logro levado a efeito por Jacó (Gn 27-28).
Essa possibilidade de um reencontro,
talvez difícil, ou problemático com seu irmão ressentido gerou em Jacó angustias
e inquietações das mais variadas e abissais; sobretudo, por receio de um final
desastroso e fatal para ele e sua família. A unidade textual (perícope) que
compõe o capitulo 32 é a narrativa de como Jacó lidou com toda essa realidade,
mas acima de tudo, como o Eterno lidou com ele, Jacó.
Portanto, a vivencia de Jacó
nessa tela narrativo-contextual está prenhe de significados espirituais que não
se esgota na experiência do próprio patriarca, mas se estende para todo o povo
de Deus em sua jornada para a Canaã celestial, daí, que podemos aprender e
apreender lições vitais para nossa vida espiritual e peregrinação nesse mundo
rumo nossa pátria celestial. Essas lições são:
Não se pode fugir a vida
toda de certas lutas
Encontramos aqui Jacó
tendo que lidar com um passado que ele tentou soterrar em sua fuga autoprotetiva
para Padã-Arã. Fugiu do embate com seu irmão, por orientação materna, mas o
tema de fundo é bem outro, na verdade tem haver com o fato de ser ele um
covarde trapaceiro que não queria assumir os desdobramentos de seus atos
fraudulentos, desonestos realizados dentro de uma trama diríamos atualmente
tipicamente kafkaniana.
A partir disso Jacó
tenta evitar a sua luta moral/familiar, mas não conseguiu isso por muito tempo.
E agora saindo mais uma vez em fuga, agora de Labão seu sogro (Gn 31.20-21) ele
está preste a ter que confrontar seu irmão e travar sua luta pessoal como deixa
consignado sua oração: 9 Então,
Jacó orou:
“Ó Deus
de meu pai Abraão, Deus de meu pai Isaque, ó SENHOR que me orientaste: ‘Retorna à tua terra e à tua parentela e Eu te farei
prosperar’:10 Reconheço que não
sou digno de toda a bondade e lealdade misericordiosa com que tens tratado o
teu servo. Eu não tinha senão um cajado para atravessar o Jordão, e agora posso
formar dois exércitos! 11 Livra-me, portanto, das mãos do meu irmão Esaú, pois
tenho medo dele, para que não venha matar-nos a todos, inclusive às mães e às
crianças.
(vs – 9-10).
O patriarca está agora,
mas maduro, prospero, com sua própria família, além disso, com suas experiências
desagradáveis, suas decepções e logros passado nas mãos de seu sogro.
Entretanto, ainda era decisivo travar o embate postergado por sua fuga
alucinada. Indo mais longe, Jacó não apenas teria que confrontar Esaú seu
irmão, mas enfrentar outra luta mais profunda carregado de densidade espiritual
e tangibilidade celestial.
Bem assim somos nós, temos certas lutas,
embates que tentamos desafortunadamente nos evadir, sem contudo lograr êxito,
todos nós, de uma maneira ou de outra, nos identificamos com esse dilema de Jacó. Por que isso é assim¿ Penso que por conta da
síndrome do Éden que caracteriza os falantes como irremediáveis fujões: 8 Ao cair da tarde daquele dia ouviram a voz e os passos
do SENHOR Deus que passeava pelo jardim, e esconderam-se entre as árvores. (Gn 3.8). Fugimos de Deus, de nós mesmo e do outro em nossas bravatas,
performances, maquiagens eticas, religiosismo, moralismos, virtuosismo,
preconceitos, enfim.
Qual é o nosso verdadeiro
problema¿
Outra lição maravilhosa que
a experiência de Jacó nos ensina é que nossos variados problemas são apenas uma
externalização do nosso real problema. Vamos tentar entender isso, qual era a
verdadeira complicação de Jacó, sua real luta era Esaú seu irmão¿ Talvez numa
leitura superficial ou açodada respondêssemos sim, a luta de Jacó era contra Esaú
e sua magoa e ressentimento por ter sido logrado e espoliado de seu direito e
benção por uma esperteza dele! No entanto, não era esse o principal problema do
patriarca, segundo Deus era o próprio Jacó: 27
Perguntou-lhe, pois: Como te chamas? Ele respondeu: Jacó. 28 Então, disse: Já
não te chamarás Jacó, e sim 28 Israel, pois como príncipe lutaste com Deus e
'com os homens e prevaleceste. (vs – 27-28).
O próprio Jacó era o tema de fundo que
elucidava sua problemática conjuntural. O fato dele encarnar em sua existencia
histórica, em sua trajetória existencial todos os significados e complexidades
de seu nome, sua sina, por assim dizer é ser demasiadamente Jacó, como nós
somos demasiadamente humanos. E ele assim o é, nós assim o somos, por fazermos
parte da massa de caídos e condenados que constituem os humanos: 10 Como está escrito: “Não há
nenhum justo, nem ao menos um;
11 não há uma só pessoa que entenda, ninguém que de fato
busque a Deus.12 Todos se desviaram, tornaram-se juntamente inúteis; não há
ninguém que pratique o bem, não existe uma só pessoa. (Rm 3.10-12). Esse é
o verdadeiro dilema da civilização humana, a alienação e ambiguidade do seu ser
(pecado).
Portanto, a única solução de
Jacó era se tornar outra pessoa, uma real transvaloração ontológica, mas como
ele poderia fazer isso¿ Não podia e essa é a essência fundamental que a sua luta
com Deus nos ensina. Assim como só Deus poderia transvalorar matricialmente
Jacó usurpador em Israel, só superamos a nós mesmo nas entranhas da nossa
humanidade caída sendo pela onipotência divina metamorfoseado em um novo ser em
Cristo (2 Co 5.17).
Essa era a
compreensão de Jesus sobre a situação existencial dos bípedes, vista do prisma
da ótica divina: 3 Jesus
respondeu-lhe, declarando: “Em verdade, em verdade te asseguro que, se alguém não nascer
de novo, não pode ver o reino de Deus.” (Jo 3.3).
De fato, só mesmo a
experimentação de uma nova realidade de existencia tão radicalizada que seria
equivalente a um novo existir pode facultar ao homem entrada segura e certa no
reinado divino.
A inevitabilidade da experiência
de Peniel
A experiência vivida
pelo patriarca de encontro confrontador e consequentemente transfigurador com
Deus não foi peculiar, singular encerrando suas implicações e significados nele.
Muito pelo contrário, Peniel em sua realidade de luta com Deus, no âmbito de
seu simbolismo escatológico-existencial é certamente universal. Ou seja, todos
nós, sem exceções, iremos nos encontrar com Deus em nossa partida desse mundo
para o outro (Hb 9.27) ou no dia do julgamento cósmico representado magistralmente
no quadro profético do julgamento do trono branco:
11 Em seguida, observei um grande trono
branco e o que estava assentado sobre ele, a terra e o céu fugiram da sua
presença e não foi achado lugar para eles. 12 Vi também os mortos, grandes e
pequenos, em pé diante do trono e alguns livros foram abertos. Então, abriu-se
um outro livro, o Livro da Vida, e os mortos foram julgados pelas observações
que estavam registradas nos livros, de acordo com as suas obras realizadas. 13
O mar entregou os mortos que jaziam nele, e a morte e o Hades entregaram os
mortos que neles havia; e um por um foi julgado, de acordo com o que tinha
feito. 14 Então, a morte e o Hades foram atirados no lago de fogo. Esta é a
segunda morte: o lago de fogo! 15 E todo aquele cujo nome não foi encontrado
escrito no Livro da Vida foi lançado no lago de fogo. (Ap 20.11-15).
Em certo nível a luta
(vayeaveq: niphal impertfeito – luta corporal)
de Jacó com Deus incorpora esses elementos do julgamento escatológico, não é
claro na literalidade histórico-experimental da narrativa, mas nos princípios carreados
no encontro conflitante, conflagratório com Deus. No caso específico, Jacó era
o agente humano desse encontro, porém, todos nós num dia existencio-temporal
qualificado seremos o agente desse encontro, todos atravessaremos nosso vau do
Jaboque, todos, a semelhança de Adão e Eva seremos convocados a comparecer a
presença divina (Gn 3.9) e como sairemos dela¿ A questão, então, não orbita em
torno do encontro com Deus, mas como sairemos desse, como sobreviveremos em
nossa pecaminosidade a presença santa e justa de Deus¿ Jacó por conta da generosidade
e graça divina tangível historicamente na jurisdição da aliança, sobreviveu e
saiu transvalorado, não mais Jacó, mas agora Israel (v-28).
Agora cabe a
pergunta, e nós como sairemos de nossa Peniel¿ Bem, a Revelação nos atesta que
é possível sobreviver a Peniel sem ser esmagado pela santa ira divina. Qual a
maneira¿ Através do ministério do mediador da aliança, Jesus de Nazaré a nosso favor.
É Jesus em seu oficio medianeiro que nos trará a paz com Deus e a semelhança de
Jacó sairemos vivos, salvos e por fim glorificados!
Entretanto, isso só
será possível se pela fé estivermos misticamente unidos a nosso redentor (Rm
5.1-2) e nele depositarmos toda nossa esperança. Em nenhum outro, só em Cristo
como nos orienta Thomas Goodwin: Repousa tão somente em Cristo, em especial
nele crucificado (Goodwin
– 2006:292).
Fica estampado que a
vivencia temporal por Jacó de sua luta com Deus é um admirável caleidoscópio inspirativo
para nossa caminhada de fé à medida que também experimentamos em um ângulo histórico
distinto, é claro, nossas próprias lutas com Deus, nossa particular, mas
solidária, passagem do Jaboque rumo a experimentação das promessas divinas contidas
no Evangelho da graça.
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