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Segundo Hebreus 6.1-4 os crentes podem perder a salvação?

 



Recentemente ouvi de uma pregadora em um aniversário de uma igreja, a partir do texto de Hebreus que o crente pode perder a salvação: 4 É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, provaram o dom celestial, se tornaram participantes do Espírito Santo, 5 provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro 6 e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à zombaria (Hb 6.1-4). Esse argumento baseado nesse texto é algo bem comum na defesa daqueles se opõem a doutrina reformada da perseverança dos santos (não falei dos pecadores!). Por conta disso, aproveitei o ensejo para fazer uma análise mais detida desse texto e provar que seu uso, da maneira que a pregadora usou e os demais, é equivocado e carece de rigor hermenêutico e teológico.

Superando então essa preliminar enfrentemos a seguinte problemática: por que Hebreus 6.1-4 não pode significar que o crente pode perder a salvação? Qual o problema dessa interpretação? Bem, inúmeros, o primeiro deles é de ordem do propósito da carta. O segundo, de natureza exegética. O terceiro de perspectiva teológica. A proveito e sigo então essa diretiva como um esboço para minha resposta a essa visão hermenêutica deficiente e superficial do texto em análise.

 

O propósito da elaboração da carta

 

 A carta aos Hebreus foi escrita com o propósito de ser um conjunto de exortações para uma comunidade que estava se afastando velozmente  do Evangelho de Jesus e dos efeitos prático da vida cristã genuína sob a égide desse Evangelho (Hb 3.12; 4.1; 6.11-14; 10.25-31;13.22). Assim pensa  Stuart Olyott: O apóstolo escreve a homens e mulheres que estavam pensando seriamente em desistir da vida cristã e voltar ao que eram antes ( Olyott -2012). E seguindo o mesmo fluxo I. Howard Marshall: A epístola é, conforme vimos, escrita para uma comunidade que estava preste a dar as costas à sua fé e ignorar a salvação que tinha recebido (Marshall – 2007).

Outrossim, esse é o princípio, a chave que vai condicionar toda a argumentação e construção lógica e aplicativa dessa epístola. Desse modo, ao interpretar o capítulo sexto dessa carta não podemos perder essa chave hermenêutica de enquadro, visto que ela será fundamental para compreendermos o sentido que o autor irá imprimir sobre o texto. E que sentido é esse? O de que no texto estamos falando de um falso crente? Ou por outro lado, de que estamos tratando de um verdadeiro crente que perdeu sua salvação? Entendo que essas duas formas de entender o texto são polarizações, que não superaram os vários problemas que o texto suscita.

Penso então que seguindo o propósito exortativo da carta, o autor está usando um caso hipotético de alguém que parece ser um crente genuíno, que inclusive experimenta de realidades espirituais provenientes do Evangelho e da presença do Espírito (vs - 4-5), mas que acaba entrando num processo de queda irrecuperável. Aqui preciso dizer que não estou sozinho, notem a afirmação de Warren W. Wiersbe:

Então, o que o autor está tentando nos dizer? É provável que esteja descrevendo um caso hipotético para provar que um verdadeiro cristão não pode perder a salvação (...) Em Hebreus 6:4, o autor muda o uso dos pronomes da primeira pessoa do plural ("nós") para a terceira pessoal do plural ("eles"). Essa mudança também sugere que se trata de uma hipótese (Wiersbe -2022).

 

Por outro lado, é importante também frisar que o fato de se ter experiencia  como essas descrita nesse texto não faz de ninguém um crente verdadeiro, pois, a  revelação vai taxativamente descrever casos daqueles que obtiveram essas experiências e mesmo assim não eram crentes de fato (Mt 7.21-23;10.1-4;Mt 13.18-22).

Na verdade, o autor tem como intenção usar esse quadro hipotético para estimular e exortar  a igreja a mudar o cenário de imaturidade, de falta de compromisso e de abandono da comunhão que estava explicito em sua vivência, ou seja, o que está em relevo é a situação contextual da igreja histórica e visível, não a alienação da salvação de um membro da igreja universal e invisível . Sendo assim, claro que não estava na mente do autor tratar da salvação de genuínos crentes.  De onde retiro essa concepção? Da própria declaração do autor, que afirma que estava falando de uma certa maneira, mas que não tinha em mente de fato essa realidade: 9 Amados, embora estejamos falando dessa forma, na realidade não cremos que se aplique a vocês (v-9a). Notaram que há aqui uma atitude intencional, figurativa de descrever o quadro narrado. Nesse ponto Hernandes Dias Lopes e taxativo: Fica evidente, portanto, que o texto em tela não está falando sobre os salvos, pois o autor aos Hebreus, quando se refere a seus remetentes, no versículo 9, diz que a eles pertence a salvação (Lopes - 2018). vejam mais evidências disso: 10 Pois Deus não é injusto; não se esquecerá de como trabalharam arduamente para ele e lhe demonstraram seu amor ao cuidar do povo santo, como ainda fazem. 11 Nosso desejo é que vocês continuem a mostrar essa mesma dedicação até o fim, para que tenham plena certeza de sua esperança. 12 Assim, não se tornarão displicentes, mas seguirão o exemplo daqueles que, por causa de sua fé e perseverança, herdarão as promessas. Grifo meu (vs – 10-12).

Entendam que o autor da carta não está discutindo a condição dos verdadeiros crentes, ele está sim, usando de uma forma de falar, de exortar para mudar, alterar aquela realidade vivida pela igreja.

 

Problema exegético

 

Agora avancemos para a questão exegética. Quais é ela?  O fato de que o termo utilizado pelo autor, parapesóntas (raiz parapíptõ um verbo particípio aoristo) impõe o sentido de uma experiencia processual e completa. Uma apostasia, um desvio grave, irremediável da fé, do Evangelho, como descreveu David W. Chapman: Caíram envolve uma completa e continua rejeição de Cristo e um afastamento da comunidade cristã (Chapman - 2010).

Partindo disso, fica claro que o autor não pensava nesse personagem como um discípulo genuíno de Cristo que nasceu de novo (Jo 3.3,5; Tt 3.4-7) teve sua mente e coração transformados pela graça redentiva da nova aliança (Hb 8.8-12), e ainda se tornou um membro do corpo místico de Cristo e foi selado pelo Espírito (Ef 1.13-14; 1 Co 12.13). Certo, quem então ele estava retratando? Do ponto de vista retóricoexortativo de alguém que parecia com um discípulo verdadeiro, com inclusive experiencias espirituais e religiosas inapeláveis, mas que afinal demonstra uma total apostasia, se desviando do Evangelho em termos irrevogáveis, sobre essa compreensão da apostasia aqui envolvida no texto escreveu Augustus Nicodemus Lopes:

 

Essa era a sua queda. Uma vez eles provaram, estiveram lá dentro, mas agora caíram, abandonaram tudo, rejeitaram a experiência que haviam tido, certamente por não ter sido ela profunda, decisiva. Não eram realmente convertidos, nascidos de novo (Lopes – 2016).

 

Agora notem que a prova dessa lógica que imponho encontra-se no próprio texto onde o autor declara seu convencimento (Pepeísmeta: convencimento) de que esse personagem hipotético não eram um crente redimido, pois, a experiencia que viveu não era própria da salvação (echómena sõtêrías): 9 Amados, embora estejamos falando dessa forma, na realidade não cremos que se aplique a vocês. Temos certeza de que estão destinados às coisas melhores que pertencem à salvação. (v-9). Percebam que o autor faz uma distinção usando o termo eles (vs-4-8) e os amados (v-9); isto é, aqueles que ele tinha convicção de outras realidades que em seguinte ele irá expor: 10 Pois Deus não é injusto; não se esquecerá de como trabalharam arduamente para ele e lhe demonstraram seu amor ao cuidar do povo santo, como ainda fazem.  (v-10).

 Portanto, é fruto de desconhecer o sentido exegético da carta que o equívoco hermenêutico se agiganta e dar à luz a esse sentido de que o crente pode perder a salvação tão apregoado em nossas igrejas pós-cristã.

 

 

Problema teológico

 

Esse problema teológica encontrada nesse texto é decorrente de se estabelecer a ideia interpretativa de que o autor está se referindo a crentes que podem perder a salvação caindo em apostasia, o que coligi diretamente com as várias afirmações do mesmo autor em outro lugares da carta, assim como em outros textos da revelação.

Destarte, as afirmações do autor que se chocam com o texto em questão giram em torno da doutrina da perseverança que ele sublinha ser inerente, intrínseca aos discípulos de Jesus e dos efeitos garantidores e eficazes da obra sacerdotal de Cristo.

Vejamos primeiramente a implicação eterna e eficiente da obra sacrificial de Jesus para seu povo que o autor da carta afirma sem reservas  e que contrária uma perspectiva de que é possível o crente perder a salvação: 23 Ora, os outros são feitos sacerdotes em maior número, porque a morte os impede de continuar; 24 Jesus, no entanto, porque continua para sempre, tem o seu sacerdócio imutável. 25 Por isso, também pode salvar totalmente os que por ele se aproximam de Deus, vivendo sempre para interceder por eles. Grifo meu (Hb 7.23-25). Notem que o autor destaca que Jesus salva totalmente ou completamente (sõzein eis tò pantelès). Veja essa mesma verdade sendo dita em outro lugar dessa carta: 11Cristo se tornou o Sumo Sacerdote de todos os benefícios agora presentes. Ele entrou naquele tabernáculo maior e mais perfeito no céu, que não foi feito por mãos humanas nem faz parte deste mundo criado. 12 Com seu próprio sangue, e não com o sangue de bodes e bezerros, entrou no lugar santíssimo de uma vez por todas e garantiu redenção eterna. Grifo meu (Hb 9.11-12). Agora vamos comparar com a suposta declaração de que o crente pode perder essa salvação (Hb 6.1-4), estranho não acham? Sim, visto que o autor trata em toda sua carta de uma obra sacerdotal, expiativa que salva de verdade, sem reparos.

Dito isso, podemos prosseguir para a declaração teológica do autor sobre a experimentação por parte dos crentes da perseverança ou da firmeza final da fé. Mostrando de modo irrefutável de que na sua percepção ética os verdadeiros crentes não vão apostatar, nem desistem da jornada, mas ao contrário vão perseverar até o fim: 36 Em verdade vos afirmo que necessitais de perseverança, a fim de que, havendo cumprido a vontade de Deus, alcanceis plenamente o que Ele prometeu; 37 pois dentro de pouco tempo “Aquele que vem virá, e não tardará. 38 Mas o justo viverá pela fé! Contudo, se retroceder, minha alma não se agradará dele”. 39 Nós, entretanto, não somos dos que regridem para a perdição; mas sim, dos que creem e, salvos, seguem avante. (Hb 10.36-39).

 Aqui é claro o contraste que o autor faz entre os que são salvos, que se mantém perseverantes na fé. E os que se perdem, que não são salvos, pois, não se mantém firmes na fé. Se avaliarmos bem, esse sentido é o mesmo que está presente no capítulo sexto, com a diferença na argumentação, que no caso do capítulo em relevo fôra um figura de retórica, um personagem hipotético, porém, a verdade é a mesma e uníssona. Comentando o texto da maravilhosa graça da perseverança  destaca Hernandes Dias Lopes: O justo não vive pelas circunstâncias, não vive pelo que vê, nem vive pelo que sente. Ele vive pela fé (Hc 2.4; Rm 1.17; Gl 3.11). Os que são de Deus não voltam atrás; eles perseveram até o fim (Lopes – 2016).

Nesse ponto dá para perceber com absoluta qualidade que a doutrina da perseverança dos santos não é uma heresia proveniente da teologia reformada, não é uma visão calvinista, mas uma verdade da revelação não só presente na carta aos hebreus mais em outros lugares da Escritura (Jo 10.27-29; Fp 1.6; 1 Pe 1.3-5, 8-9; Jd 1.24; Rm 8.28-30,33-34,38-39). Finalizo com a sabedoria cantante da erudição sagrada do puritano Thomas Brooks, citada no Livro de John Blanchard, The Complete Gathered God: As joias terrenas são, às vezes, separadas de seus donos; as joias de Cristo, nunca. As joias terrenas são, às vezes, perdidas; as joias de Cristo, nunca. As joias terrenas são, às vezes, roubadas; as joias de Cristo, nunca! (Blanchard, Evangelical Press, Darlington, England, 2006,p.446).SDG.


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