O titulo em destaque é uma indagação extraida do capítulo 6 do livro dos
Genesis. O texto em análise propoe um fato material-histórico fundante, qual
seja: a corrupção que ganha contornos empiricos finais na procriação advinda da
conjução carnal entre filhos de Deus e filhas dos homens, como estertor, isto
é, o fim da leniencia de Deus para com a sociedade prediluviana. Essa
eventuação histórica veem sendo elucidada dentro de certos vetores
hermeneuticos, que hora passamos a avaliar por intermédio de uma análise
teológica.
1.
TEORIAS EXPLICATIVAS DA
EXPRESSÃO – FILHOS DE DEUS
A primeira tarefa nesse desiderato literário é definirmos a expressão
filhos de Deus (beny
haElohim). Ao tentarmos tal empreitada logo percebemos a natureza plural da expressão, que impões uma fragmentação a
partir do arranjo que segue:
A – filhos de Deus como a
linhagem de Caim que se misturou a linhagem separada de Seth
Filhos de Deus como a linhagem
santa de Sete é a primeira e mais tradicional interpretação empreendida pelos
hermeneutas do texto sagrado, ela foi subscrita pelos dois grandes vultos da
reforma, Lutero e Calvino que entendiam ser os ‘filhos de Deus’ e as ‘filhas dos homens’ como sendo a geração
piedosa de Sete e a geração promiscua de Caim. O pecado foi a mescla das duas
sementes que como decorrencia contaminou a linhagem separada provocando a ira
divina. Dessa forma escreve Calvino em seu Comentário
sobre Genesis: A pequena porção que Deus havia adotado, por meio de um
privilégio especial, para si mesmo, deveria permanecer separada dos outros.
Foi, portanto, grande ingratidão que a posteridade de Seth, se misturou com os
filhos de Caim, e com outras raças profanas; porque se privaram voluntariamente
da graça inestimável de Deus. Pois foi uma profanação intolerável, perverter e
confundir a ordem designada por Deus. E isto, parece a principio uma visão
frívola, que os filhos de Deus sejam tão severamente condenados, por terem
escolhido para si belas esposas das filhas dos homens.
(Calvino – 2003).
Lutero em suas Preleções sobre
Gênesis segue a mesma toada interpretativa realizada por Calvino: Logo, o
verdadeiro sentido é este: Moisés chama de filhos de Deus os homens que
perteciam à promessa da Semente abençoada. Pois o dilúvio não veio porque a
geração de Caim se tornara corrupta, mas porque a geração dos justos, que havia
crido em Deus, obedecido à palavra e observado o verdadeiro culto, incidiu na
idolatria, na desobediencia aos pais, nos prazeres e na tirania (Lutero –
2014).
Essa posição interpretativa tem como grande atrativo o fato de evadir-se
das complicações presentes no texto; além disso, ela se enquadra (numa leitura rápida e superficial) mesmo
que precariamente na tela contextual ao contrastar a maldita posteridade de
Caim com a linhagem santa de Sete.
Entretanto, deve ser rejeitada de pronto, visto que a expresão Filhas
dos homens (b’nôt haadam) é genérica para humanidade, não podendo ser (exceto
por malabarismo exagético) ser particularizado para ser enfeixada na geração
sethista. O erudito do VT Bruce Waltke sobre a plausibilidade de uma
interpretação restrita de filhas dos homens afirma: homens é genérico para
humanidade, e filhas se refere a toda sua descendência feminina. É arbitrário
no próximo versículo, limitar homens aos setitas e filhas aos cainitas (Waltke
– 2010).
Fora isso tem-se a séria objeção filológica; isto é, a expressão filhos
de Deus é no VT utilizada quase que exclusivamente para anjos (Jó 1.6; 2 Sm 7.14;
Sl 3.7; 82.6), a exceção é a citação no profeta Oseias que atribui a expressão
filhos de Deus a seres humanos (Os 1.10).
Uma outra interpretação muito aparenteada a essa concebida por M.G.
kline em seu - Divine Kingship and Sons of God in Genesis 6.1-4 é a de que os
filhos de Deus eram príncipes que se casaram com jovens fora de sua posição
social e tomaram grande número delas para seus harens. Kline inclusive traduz
filhos de Deus para ‘reis divinos’. A fragilidade exegetica dessa posição é tão
explicita em suas preconcepções que não propicia uma análise mais detalhada.
B – filhos de Deus como anjos
que deixando a habitação celeste procriaram com as filhas dos homens
A favor dessa
interpretação está a sua antiguidade na tradição da igreja; ou seja, a
concepção de filhos de Deus em genesis 6 como anjos (mal’akîm) é presente na
literatura religiosa antiga desde a literatura apocalíptica até os pais da
igreja primitiva. Segundo Lewis Sperry Chafer em sua Teologia Sistemática, a tradição antiga privilégia a visão do
intercurso sexual dos anjos com as
filhas dos homens: Que filhos de Deus de Gênesis 6. 1-4 foram anjos foi mantido pela antiga
sinagoga judaica, pelos judeus helenistas, entes e durante o tempo de Cristo, e
pela Igreja até o quarto século, quando a interpretação foi mudada para ‘filhos
de Sete’. (Chafer – 2003).
Bem, não apenas é presente na hermeneutica antiga da igreja, mas na
atualidade muitos estudiosos e eruditos também perfilam-se por tal
entendimento, como por exemplo Dr. Roy B. Zuck: Contextualmente, parece que
esse casamento misto fala de um relacionamento entre seres angelicais e seres
humanos, um cruzaamento ilegitimo de ordens da criação divinamente segregadas
que produziram os mostruosos ‘gigantes’ (Zuck – 2010).
Ainda recomendando essa
interpretação está o fato de ser ela uma altenativa para a presença dos
gigantes ( n’fîlîns) que claramente está justaposto com o os homens famosos
(gibborim) nascidos desta união entre os filhos de Deus e das filhas dos homens
(v.4). Qual o problema então com essa interpretação? Primeiro a falta
de enquadramento contextual, pois, tal compreensão não se ajusta ao contexto do
dilúvio, isto porque que o juízo do dilúvio é contra a humanidade (vs.3-5) e
não contra seres celestiais. Isso é tão singular que no texto Deus
especificamente rotula os ofensores (v.3) de “carne” (basar).
Em segundo lugar esta
interpretação coligi, pelo menos em primeiro plano, com a afirmação de Jesus de
que os anjos não se casam (Mt 22.30; Mc 12.25). É claro que estou conciente dos
textos onde os anjos assumindo forma (morphê) humana são descritos comendo e
bebendo (Gn 19.1-3), porém, isso é bem distinto de pontificar que estes podem
praticar intercurso carnal e procriarem, fato que ao meu juizo é obstado por
Jesus no texto que estabeleceu ser vetado aos anjos o matrimonio, penso que tal
impossibilidade avultada por Jesus transita no plano material e não puramente
formal, dito de outra forma, que os anjos estão incapazes de procriar e não
proibidos de procriar.
C – filhos de Deus como anjos que possuindo
homens depravados procriaram com as filhas dos homens
Essa é uma alternativa
hermeneutica que fugindo das implicações das posições exegéticas aventadas
tenta fundi-las naquilo que são seus pontos fortes. Penso que esta
seja a melhor solução, visto que ela combina os vetores humanos e angelicais,
pois, descreve os filhos de Deus como anjos apóstata que deixando sua posição
celestial, inchados em sua lascívia e saturados de excitação (a expressão
viram, vayr’ú um qal imperfeito traz
a ideia de colocar os olhos com prazer) possuiram homens que por seus desvios
espirituais estavam disponíveis ao seu controle, confiscando-lhe assim a
identidade pessoal. Essa posição afina-se com o magistério do W.H. Gispen que
em sua obra - Genesis I: Kommentaar op het Oude Testament destaca
serem esses filhos de Deus homens controlados por anjos em explicito processo
de apostasia: O texto nos apresenta homens que são controlados pelos anjos
apóstatas (Gispen – 2001).
Mais que isso, essa forma de enxergar os
filhos de Deus consegue responder aos reclames presentes no texto, tais como: a
presença dos N’fîlîns e dos Gibborîns, a união carnal sobre o prisma bifronte
do celeste e terreno – filhos de Deus versos filhas dos homens; ao mesmo tempo
que evita as dificuldades inerentes como: a procriação de anjos, a
interpretação forçada de filhos de Deus como descedencia de Sete, enfim.
Além do mais esse visão se ajusta
com a afirmação do NT sobre presença da possessão demoniaca (daimonidzomai) e seu caráter de
confiscabilidade da identidade pessoal (Mt 8.28; Mc 5.15; Lc 8.36). Por fim, é
importante lembrar que essa
interpretação coaduna-se com a alusão à genesis 6 feita pelo Ap. Judas: E lembro a vocês aqueles anjos que antes eram puros e santos, mas que se
voltaram voluntariamente para uma vida de pecado. Agora Deus os conserva
acorrentados em prisões de escuridão, aguardando o dia do juízo (Jd 1.6) e pelo
Ap. Pedro em sua segunda carta (2 Pe 2.4-5 ).
Espero ter contribuido
tanto para uma melhor luz sobre esse texto vitima de tantos abusos e má
interpretação, como para provocar uma reflexão maior sobre temas mais
complexos, mas não menos importante que são trazidos pela divina Escrituras,
notadamente a angiologia, ou seja o estudo sistemático e analítico da pessoa e
obras dos anjos presentes na revelação. SDG.
Rev. Marcus King Barbosa
Comentários
Postar um comentário