A verdade (alêtheia) foi uma temática recorrente
no discurso kerigmático de Jesus. A Verdade era pra ele a engrenagem piloto da
superestrutura do que entendia ser o Evangelho. Na sua ideologia
profético-sacerdotal-real a Verdade era tema de alto-relevo, caríssimo visto
que por meio dela às realidades dinâmicas do reino de Deus (Malkuth Yavé) ganharam feições
histórico-temporais concretas.
Jesus ensinava que através da
Verdade o teoprojeto da Redenção (apolytrwsis)
se concretizara em sentido escatológico-existencial. Nesta porção do evangelho
de João (8.32-59) o assunto conglobante, predominante e nuclear é a Verdade
como via de acesso ao discipulado cristão: sua natureza, dinâmica instrumental,
implicações, enfim.
Neste texto tentarei obter algumas
respostas em relação a essa Verdade: como conhece-la? O que ela realiza na vida
dos que a conhecem¿ Quais às suas exigências?
À medida que imergimos no texto canônico em busca dessas respostas que essa
Verdade possa trabalhar santificadoramente em nossa alma.
Morar
com a Verdade - Judeus ou Discípulos?
Jesus sempre trabalhou em sua
pedagogia os temas do reino de Deus a partir da categoria retórica da dialética
contrapondo ideias em seus arrebatadores sermões: joio x trigo, Luz x trevas,
enfim. Aqui mantendo essa estratégia didática Cristo utiliza-se do contraste
Judeus x discípulos: 31 Então, disse Jesus aos judeus que haviam crido nele: “Se
permanecerdes na minha Palavra,verdadeiramente sereis meus discípulos. (v-31) grifo meu.
Jesus explicitamente destaca que ser
discípulo dele era estar absolutamente fora da jurisdição do judaísmo como
representante simbólico de todo tipo de religiosidade e sua parafernália
alienante. Cristo estabelece esse dualidade na exata relação que ambos
personagens possam ter com a Verdade:
32 E conhecereis a verdade, e a verdade vos
libertará
(v-32). Uma relação de intimidade e fé. Ser judeu aqui na concepção de Jesus
perpassa o mero critério etnocêntrico, racial significando sim a experiência da
religação (religare) homem/Deus sob marcadores puramente tradicionais, humanísticos,
meritórios, metodológicos e ritualísticos, sem um encontro real, histórico,
libertário com o Deus Vivo e Verdadeiro e com o Cristo Vivo da fé possibilitados
pelos processos que configuram o Evangelho: graça, regeneração, fé salvadora,
conversão, arrependimento.
Neste sentido, da forma que está
colocada temos sim essa ambivalencia em nossos dias: judeus x discípulos. Mas
quem são eles? Judeus hoje são todos aqueles que fizeram o caminho para Deus
sob o pavimento instável do religiosismo; isto é, a revelia do evangelho da
graça, que é o equivalente de dizer: confiando em seus méritos, pedigree
racial, familiar, na tradição, milagre, conveniência, oportunismo, conversão
falsa...
Portanto,
ser judeu no prisma da pedagogia de Jesus é está na igreja visível sem
conversão genuína, arrependimento eficaz, fé salvadora, convicção da pecaminosidade
e demérito pessoal/espiritual, da prevalência
absoluta da graça na concessão da salvação, vou além é estar longe da Verdade.
Por seu turno, contrariando tal
postural existencial definida como judeu, ser discípulo é habitar (menw) na Verdade e pela fé vivenciar
seu poder e desdobramentos redentivos (1 Pe 1.22-25). Penso que o pastor Hernandes
Dias Lopes captou bem a essência desse contraste gritante: Um discípulo não é
um crente superficial, mas alguém que permanece em Cristo (...) a verdadeira fé
que desemboca no verdadeiro discipulado é evidenciada por um relacionamento
estreito com Cristo.(Lopes – 2015,p.254).
O
apostolo Paulo trabalhou essa categoria, de certa forma quando destacou a
presença de um falso status judaico naqueles que reivindicam o protagonismo da
relação com Deus, mas não evidencia esse status na concretude da existência (Rm
2.17-24). Para o reformador João Calvino Jesus foi bem esclarecedor acerca do
que representava ser se discípulo, afirma ele: muitos professam ser seus discípulos,
e, no entanto, não o são realmente, e não têm o direito de ser considerados
como tais. (Calvino – 2019,p.369).
Então me pergunto como pode os
crentes pós-modernos se considerarem discípulos de Cristo tão distanciados de
sua ética, ensino, obra, comportamento, generosidade, perdão, misericórdia,
enfim? Na verdade não são discípulos, no máximo entusiastas ou fãs. Até porque
é completamente contraditório ser discípulo e ao mesmo tempo perseguidor dos
irmãos, ser discípulo e não exercer o ministério do perdão, ser discípulo e não
experimentar o arrependimento, ser discípulo e olhar os outros com desdém ou
altivez, ser discípulo e estigmatizar o outro com os variados preconceitos que
saturam a igreja da modernidade, ser discípulo e desejar o mal, o fracasso do
outro, ser discípulo e albergar no coração ódio e ressentimento.
Uma das evidencias mais expressiva
desse quadro é a própria postura da igreja diante de sua crise de identidade e
propósito; ao invés de lamentar, confessar e mudar, o que ela tem feito? Se
escondido por detrás das pesadas cortinas dos eventos, dos Congressos
multitemáticos, dos ‘cultos’ mistificados, das caras viagens para a ‘terra santa’,
das ritualidades, das confissões positivas, das frases feitas (tenho ouvido muitas
atualmente, sobretudo, nas redes sociais) do tipo:
- Minha
família é uma benção!
Porém,
se continua sendo nessa família uma esposa insubmissa, rixosa e nescia! Ainda:
-
O maior investimento é a família!
Concerteza,
mas se vive nessa família como um esposo ignorante, indiferente, e em muitos
casos infiel. Essa ouvir recentemente:
-
Não se constrói um novo casamento sobre os escombros de outro!
Certo,
no entanto, se vive um ‘casamento’ mais pecaminoso do que o divórcio!
Entendeu? Não basta frases, não bastam
congressos, não basta parece ser, é preciso ser, é necessário se viver
realmente o Evangelho e sua virtude (dynamis)
transformadora: na família, casamento, trabalho, escola, universidade, enfim,
senão é apenas enganação e performance que é o que mais temos, diga-se de
passagem, nessa Babilônia que hoje é o mundo gospel. SDG.
Rev. Marcus King Barbosa
Psicanalista
Clínico, Filósofo da Cultura, Teólogo Reformado e Discípulo de Jesus
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