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A Igreja comunidade de discípulos

O que é a Igreja? Pode-se dizer que ela é a comunidade de santos que como projeto divino foi concebida na eternidade e redimida pela graça de Deus no tempo transformada em uma sociedade de discípulos dentro do processo histórico como versão ou concretização do reino de Cristo. Etimologicamente a igreja pode ser descrita como os “chamados para fora”. Em grego ekklêsia que no grego clássico se referia a uma assembleia de qualquer tipo, religiosa ou secular. No uso do Novo Testamento era o equivalente das palavras hebraicas qahal e ‘edhah, significavam uma reunião ou assembleia, como as que o judaísmo tinha na sinagoga. Augustus H. Strong define a Igreja como o conjunto de pessoas regeneradas em todos os tempos e épocas, no céu e na terra (Strong, SP, 2009, VL 2, p.630).


Distinções na natureza da Igreja

        Do exposto ficam estabelecidos alguns pressupostos elementares que caracterizam a constituição ontológica da igreja. O primeiro deste é sua natureza metafisica. Ao me referir à metafísica quero salientar realidade da origem supratemporal da igreja que como projeto em Deus acontece antes do tempo. Esse aspecto está presente na mente de Paulo quando ele assinala sua gênese teológica (Ef 1.1-4).  O segundo pressuposto sugerido na abordagem é sua historicidade. Com essa me refiro aos contornos históricos e existências que apresentam a igreja como fenômeno intratemporal. É neste norte que os apóstolos e o próprio Jesus se referiram a igreja a identificando com cidades ou regiões, como por exemplo, a igreja em Corinto, em Éfeso, Antioquia, na Ásia, enfim.

        Essa igreja histórica é tanto universal como local. Representa tanto a totalidade de todos aqueles que professam a fé em Jesus, como uma unidade circunscritamente local e geograficamente designada (At 5.11 ; 8.1; 11.22,26;12.1, 5; I Co 11.18; 14.19.28, 35; Rm 16.4; G1 1.2; Cl 4.16 ITs 2.14). Para Norman Geisler essa realidade binária que manifesta a igreja não pode ser negligenciada, diz ele que devemos fazer uma distinção entre a igreja universal (que constitui o corpo invisível de todos os crentes) e a igreja local (uma manifestação visível da Igreja universal em uma determinada localidade (Geisler, SP, VL 2, p.507).

        Além dessa divisão temos também a igreja como invisível e visível. A igreja visível é o conjunto dos crentes que na história confessam e confessaram a fé em Cristo. Nesta configuração a igreja é percebida em sua exterioridade institucional, geográfica e temporal. A Igreja invisível por seu turno é a igreja formada dos crentes que já estão no céu como também de todos aqueles que são alvos da vocação eletiva de Deus em sentido universal, desta feita supralocal, ultrageográfica e atemporal. Em seu magistério teológico Wayne Grundem ataca com maestria essa ambivalência:


Na sua verdadeira realidade espiritual como a comunhão de todos os verdadeiros crentes, a igreja é invisível. Isto é porque nós não podemos ver a condição espiritual do coração das pessoas. Podemos ver o externamente frequentar o templo, e podemos ver a evidência exterior de mudança espiritual interior, mas não podemos realmente ver o coração das pessoas e sua situação espiritual, só Deus pode ver isso. Assim, Paulo diz: "O Senhor conhece os seus" (2 Tm 2:19).Mesmo em nossas igrejas e nossos bairros, só Deus sabe ao certo quem são, sem erro os verdadeiros crentes. Falando da igreja invisível como autor de Hebreus fala da "assembleia (literalmente," Igreja ") dos primogênitos inscritos nos céus" (Hb 12:23), e diz que os crentes de hoje estão unidos com a montagem em adoração. Podemos dar a seguinte definição: A igreja invisível é a igreja como Deus a vê. (Grunden, SP, 2010, p.1331)



A importância da Igreja Local

        É na igreja local por sua vez que a realidade ideal ou universal da comunidade espiritual que tem em Cristo seu portador ganha contornos perceptíveis e concretos. Apesar de suas limitações temporais e finitude existencial, não se pode detrair a importância veiculadora da igreja como concebida nos planos divino. Partilha dessa convicção Strong que salienta ser a igreja local:


Uma companhia menor de regenerados, que, em qualquer comunidade se reúnem voluntariamente, de acordo com as leis de Cristo, com o proposito de assegurar o completo estabelecimento do seu reino em si mesmo e no mundo.(Strong, 2010,p.638-39)

        Portanto, é na igreja local que a multiformidade das riquezas da salvação são comunicadas e as riquezas singulares da mediação de Cristo são fruídas (Ef 1.3-14). A autoridade dessa conclusão é facilmente provada se entendermos que a redenção tem como sua realização imediata a criação de uma comunidade de redimidos que exiba os frutos dessa redenção em relações transformadas e marcadas pela pratica da justiça do reino (Ef 4.15-32). Podemos avançar mais e afirmar que é na esfera da igreja visível que o poder do reino de Deus é sentido e sua manifestação encontra lugar propicio. Perfila tal entendimento o teólogo Louis Berkof:


Certamente se pode dizer que a igreja visível pertence ao Reino, faz parte do Reino e até constitui a mais importante incorporação visível das forças do Reino. Ela compartilha o caráter da igreja invisível (sendo ambas uma só) como meio para a realização do reino de Deus. (Berkof, SP, 2012,p. 568).


Igreja comunidade de discípulos

        Essa igreja encerra em si um principio fundamental que reputo ser regulamentar para todas as suas características legitimatórias tais como: santidade, unidade, catolicidade e apostolicidade. Esse princípio que nesse primeiro momento destacaria (futuramente trataremos das características elencadas) é o ser ela uma companhia de discípulos (talmidîm, mathêtes).

        Cristo deixou claro que esperava que a igreja se tornasse uma comunidade de discípulos: “18 Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra.  19 Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;  20 ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século.” (Mt 28.18-20). Os primeiros líderes e cristãos da igreja compreenderam essa ênfase no discipulado dada por Jesus e constituíram a igreja numa sociedade de discípulos: “Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos.” (At 6.1).

        Como comunidade de discípulos a igreja esta vinculada jurisdicionalmente a Palavra Revelada de Deus (que adquiriu contornos propositivos e histórico-existencial no que conhecemos como Bíblia Sagrada) como Constituição do Reino (malku’th, basiléia) de Cristo. Essa Constituição como carta político-espiritual se apresenta materialmente atualizada nos ensinos apostólicos e proféticos na condição de legisladores positivos e constituintes originários instituídos pelo Cabeça e Governante supremo da Igreja, a saber Jesus: “20 edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular;  21 no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor,  22 no qual também vós juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito.” (Ef 2.20-22).

            Nessa Constituição estão desde a arquitetura do governo, a forma e os meios de cidadania até as garantias individuais, sociais e políticas dos cidadãos da Nova Comunidade fundada no Calvário. Assim como não há real exercício de cidadania ao arrepio da Constituição, não existi cidadania espiritual negligenciando a palavra divina.       Isso porque segundo Jesus é através dela que se recebe a nova vida indispensável à filiação divina (Jo 3.3-5; 1 Pe 1.3,23), a justiça do reino que titulariza os direitos espirituais de cada crente e a fé (Rm 1.16-17; 10.17) que é agência causal da santificação (Jo 17.17).

O discipulado e seu crescimento

        Cristo ao fundar sua comunidade intentou que ela se desenvolve-se. Na verdade esse crescimento é parte das consequências dos seus labores medianeiros (Is 53. 10-12) e sendo assim parte da vontade de Deus para todos nós como sua igreja. John Stot captou isso de maneira formidável quando salientou que Deus nunca cessa de ser nosso Pai, e nós nunca cessamos de ser seus filhos. Mas ele quer que nos tornemos seus filhos crescidos (Stot, SP, 1995 p.284).

        Bem verdade que esse crescimento não é puramente quantitativo. É prioritariamente um crescimento em espiritualidade, que é o mesmo que afirmar ser um crescimento em intimidade existencial com Cristo, ou maturidade (télos). A maturidade do discípulo está frontalmente ligada ao conhecimento e incorporação da palavra (debar, logos) do reino (2 Tm 3.14-17). É por meio da dela que a seiva da Nova Vida nutri e fortalece a comunidade dos discípulos. Essa verdade foi ensinada por Jesus através da alegoria da vinha: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor.  2 Todo ramo que, estando em mim, não der fruto, ele o corta; e todo o que dá fruto limpa, para que produza mais fruto ainda.  3 Vós já estais limpos pela palavra que vos tenho falado;  4 permanecei em mim, e eu permanecerei em vós. Como não pode o ramo produzir fruto de si mesmo, se não permanecer na videira, assim, nem vós o podeis dar, se não permanecerdes em mim.  5 Eu sou a videira, vós, os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.  6 Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam.  7 Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito.  8 Nisto é glorificado meu Pai, em que deis muito fruto; e assim vos tornareis meus discípulos.” (Jo 15.1-8). Nesta, Cristo deixa patente que não é possível maturidade espiritual real sem profunda intimidade com ele. Na sua forma de encarar o assunto do crescimento Jesus estabelece que crescer como discípulo é fruto da seiva de vida que brota da conexão dos ramos (discípulos) com a videira (Jesus).

                Por seu turno o apóstolo Pedro ressalta o crescimento (auksánw) dos discípulos utilizando-se da metáfora do leite: “Despojando-vos, portanto, de toda maldade e dolo, de hipocrisias e invejas e de toda sorte de maledicências,  2 desejai ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual, para que, por ele, vos seja dado crescimento para salvação3 se é que já tendes a experiência de que o Senhor é bondoso.  4 Chegando-vos para ele, a pedra que vive, rejeitada, sim, pelos homens, mas para com Deus eleita e preciosa,  5 também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo.” (1 Pe 2.1-5), para Ele há uma relação direta e imperativa entre o beber da palavra com avidez e a maturidade espiritual, visto que ele utiliza-se do verbo desejar muito (epipothêsate) no tempo imperativo aoristo ativo que enfoca uma ordem inquestionável e de natureza material definitiva. Na percepção de Kistemaker o crescimento é consequência do beber da palavra como leite espiritual:

O resultado de beber do leite da palavra de Deus deve ser o crescimento espiritual dos crestes. Assim como uma mãe está sempre procurando indícios de crescimento em suas crianças, Deus também quer ver o crescimento espiritual dos seus filhos (Kistemaker, 2006,p.112).


        De outra sorte este caráter indispensável da palavra para a Igreja como comunidade de discípulos torna uma necessidade crucial a experimentação concomitante da autoridade e poder divinos (At 3.1-26; 4.5-31; 5.12-16; 8.32-43 entre outros). Essa carência essencial nos é apresentada pela Escritura de várias maneiras. Uma delas é na própria instituição do chamado (proskaléomai) onde Cristo no rito vocacional dos apóstolos lhes delega eksousías, isto é, autoridade espiritual: “Tendo chamado os seus doze discípulos, deu-lhes Jesus autoridade sobre espíritos imundos para os expelir e para curar toda sorte de doenças e enfermidades.  2 Ora, os nomes dos doze apóstolos são estes: primeiro, Simão, por sobrenome Pedro, e André, seu irmão; Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão;  3 Filipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o publicano; Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu;  4 Simão, o Zelote, e Judas Iscariotes, que foi quem o traiu.” (Mt 10.1-4). Outra é a promessa do derramamento do Espírito: “7 Respondeu-lhes: Não vos compete conhecer tempos ou épocas que o Pai reservou pela sua exclusiva autoridade;  8 mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra.” (At 1.7-8). Aqui Jesus declara que esse revestimento de poder (lêpsesthe dýnamin) tinha como objetivo capacitar os discípulos a serem testemunhas (mártyres), o que é equivalente a integralidade do discipulado, pois, a própria natureza nuclear do discípulo é ser testemunha fiel do mestre.

        Por fim, a condição conflitiva que marca o universo onde o discipulado é desenvolvido. Quero afirmar com isso que somos convocados pelo Messias a sermos seus discípulos não num parque de diversão, mas em um mundo hostil a mensagem cristã e controlado por forças demoníacas, como deixa claro Paulo: “10 Quanto ao mais, sede fortalecidos no Senhor e na força do seu poder.  11 Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo;  12 porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes13 Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, depois de terdes vencido tudo, permanecer inabaláveis.”(Ef 6.10-13). Nesse ambiente é mais que óbvio a necessidade de armas, recursos compatíveis e adaptados a essa dura refregas, batalha o que numa linguagem militar o apóstolo aos gentios descreve como armadura (panóplia) espiritual (Ef 6.10-20). Essa armadura é o fruto consumado e experenciado do poder (dynamis) divino, dos dons (karismas) carismático que Deus dota sua Igreja para que ela possa ser essa comunidade dinâmica, engaja e atuante de discípulos.

        Portanto, enquanto igreja é imprescindível que o discipulado seja algo dominante em sua práxis missionária e evangelizadora. Não basta apenas abarrotar os templos de conversos se ao mesmo tempo esses conversos não estão tornando-se discípulos de Cristo. Não é suficiente o apelo ao engajamento aos projetos da Igreja, a frequência ao culto, se no mesmo fôlego não se trabalha duro para esculpir a imagem e caráter de Jesus nos membros. Não é definitivo saber a cartilha da denominação se não se sabe a doutrina de Cristo, não dá para apenas buscar cura e bênçãos de maneira frenética e voraz se não se busca com a mesma intensidade dispositiva conhecer Cristo. Urge descontruir o espectro que se tornou a igreja visível nessa nossa modernidade liquida que, por falta de uma terminologia melhor posso designar de consumidores espirituais para o que Jesus sonhou e designou que sua comunidade fosse, isto é, uma comunidade de discípulos. Pense Nisto!!!



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