É
pelo jogo, pelo brinquedo que crescem a alma e a inteligência (...) uma criança
que não sabe brincar, uma miniatura de velho, será um adulto que não saberá
pensar (Chateau - 1987).
Esse pequeno texto é uma
provocação a uma tese que vem ganhando corpo dentro da didática pedagógica que
é a de que a criança pode ser alfabetizada antes do período de seis anos de
idade; isto é, no período que encerra a chamada educação infantil. Na verdade,
numa recente jornada pedagógica em nossa região, fui informado sobre o tema em
tela, visto que se trabalhou como pauta nessa citada jornada a efetiva
implementação dessa política pedagógica.
Qual meu interesse?
Primeiro, o fato de estar cursando licenciatura em pedagogia. Segundo, por
conta da minha prática psicoterapêutica de mais de vinte anos de clínica
lidando transversalmente com essa temática dentro das dificuldades com a
aprendizagem. Terceiro, por conta da minha linha de pesquisa cognitivointegrativa que coloca as
questões de aprendizagem em rota de interesse.
Pré-requisitos
para a alfabetização
Destarte, superando-se
essa parte preliminar podemos entrar nas questões de mérito que envolvem a
possibilidade ou não de se iniciar a alfabetização no período anterior aos seis
anos. O que estamos perguntando aqui? Qual o momento em que a criança pode
estar apta para ser alfabetizada? Essa indagação impõe indispensavelmente o
reconhecimento logo de imediato, da presença de pré-requisitos básicos e
fundamentais que uma criança deva possuir para ser realmente alfabetizada. O
que quero dizer com pré-requisitos? Estou me reportando as habilidades que a criança já traz
anteriormente ao ato de alfabetizar que a capacita basicamente para entrar nesse
universo de maneira adequada. Quais seriam essas habilidades prévias?
Respondo utilizando um recorte panorâmico que nos dará mais clareza:
1. Reconhecimento visual das letras e
suas formas e sua memorização;
2. Percepção fonológica das letras e a
capacidade de discerni seus sons;
3. Desenvolvimento da fala e da
linguagem oral e expressiva em nível adequado;
4. Percepção da organização das letras e
dos sons no processo da construção das palavras.
Aqui de imediato se vislumbra
a primeira dificuldade, que é qual a real possibilidade de uma criança adquirir
essas habilidades antes dos cinco a cinco anos e meio de idade? Isto é uma boa
pergunta não acham? E penso que por força de coerência, os advogados da
alfabetização antes desse período deveriam responder. De fato, insisto, se a
criança não consolidar essas competências previas antes dos seis anos, ela irá
vivenciar sérios problemas no processo evolutivo da alfabetização e na sua
trajetória educacional, o que é uma realidade lamentavelmente presente em nosso
sistema. Ou vocês estão satisfeitos com os lamentáveis indicies de nossa alfabetização?
Portanto, como se
alfabetizar, antes de se consolidar requisitos preliminares? Esse é um
questionamento teórico, técnico e metodológico, não uma mera especulação ou conjectura
vazia. Porém, é exatamente isso que implicitamente se propõe os proponentes da
alfabetização precoce, quando advogam antecipar o processo da alfabetização
para dentro da esfera restrita da educação infantil.
O
que é alfabetizar?
Posso ampliar a
problemática se perguntar o que é alfabetizar? Respondo com a definição
apresentada pelo neurocientista e psicolinguista José Morais: Alfabetizar é
ensinar a Ler e Escrever num sistema Alfabético, é tornar alguém capaz de
utilizar o Alfabeto (Morais, 2014). Esse conceito afirma que nosso sistema
de escrita não é silábico, é alfabético. O que isso quer dizer? Simples, que eu
não posso alfabetizar por meio da silabação (da, de, di, do, du, ba, be, bi, bo,
bu...) porque nosso sistema de escrita é alfabético. Então quer dizer que não
devo utilizar mais as silabas? Não de modo direto, sem que antes a criança
entenda o conceito do nosso sistema de escrita, que deve acontecer antes do
alfabetizar propriamente dito, ou seja, no campo
de experiência: escuta, fala, pensamento e imaginação, pontificados no BNCC
e nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação infantil.
Precisamos entender que
alfabetizar é capacitar as crianças a diferenciarem o alfabeto e a partir
disso, compreenderem como se juntam as letras, como as letras formam silabas,
como as silabas se agregam e formam palavras, as palavras formam frases e as
frases constroem textos. Essa teia se conecta diretamente com a maneira
orgânica de ler e aprender. É o que se designa de hierarquia cognitiva ou encadeamento
cognitivo, ou seja, do simples para o complexo.
Destarte, não precisa ir
muito longe para se perceber, os enormes prejuízos que as crianças podem experimentar,
nessa tentativa de progressão, visto que é exatamente nesse período que o
desenvolvimento neural vai criar uma espécie de base cognitiva,
que será fundamental para o complexo de aperfeiçoamento que se seguirão nos
anos seguintes. Entenderam isso? Percebem a incoerência da proposta? Como ela
irá retirar os necessários elementos da ludicidade tão decisivos para a
evolução cognoscente da criança? Penso que Luciana Brites entendeu bem o perigo
desse pulo de etapas em seu livro – Brincar é fundamental: Cronológica e
biologicamente falando, existe um tempo determinado, ou seja, mais adequado,
para o desenvolvimento do seu filho. E compreender como o cérebro dele
amadurece, o que vai afetar o modo como ele aprende e se comporta, é essencial
para ajudá-lo a chegar lá com naturalidade (Brites – 2020).
A palavra vital na visão arguta de Luciana é “tempo determinado” para
amadurecimento, não precisa pressa, ansiedade, basta seguir o fluxo organiconatural
presente na estrutura bioneurocognitivo da própria criança. O que sinceramente
não conseguimos visualizar em medidas antecipatórias que insiram realidades
epistemológicas que a crianças ainda não estão preparadas para vivenciar.
Interferência
nos processos de construção da identidade
De outra sorte, tem-se outro problema quando
pensamos na implantação da alfabetização das crianças na etapa da educação infantil.
Qual seria essa problemática? A interferência
no processo de construção identitária da criança. Essa afirmação advém do fato
cientifico de que o progresso infantil acontece dentro de um contexto marcado
por uma formação cognitivo, emocional, afetiva e comportamental que tem seu
germe iniciativo na experiência do brincar e interagir, sendo esses eixos
estruturantes nessa fase de construção da identidade, como explicita o Base Nacional
Comum Curricular:
Considerando que, na Educação
Infantil, as aprendizagens e o desenvolvimento das crianças têm como eixos
estruturantes as interações e a brincadeira, assegurando-lhes os direitos de
conviver, brincar, participar, explorar, expressar-se e conhecer-se, a
organização curricular da Educação Infantil na BNCC está estruturada em cinco
campos de experiências, no âmbito dos quais são definidos os objetivos de
aprendizagem e desenvolvimento (BRASIL. Ministério da
Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018).
O que quero dizer com
isso? Que é possível que na ânsia de ver o progresso infantil se tentar
antecipar processos que rompam com essa cadeia dourada formativa de potencial e
aprendizado que o ambiente fornecido pela educação infantil proporciona, de
pura intencionalidade educativa. Dito de outra forma, minha convicção é que essa
busca por preconizar a alfabetização para antes dos 6 anos constitui-se num
tipo de pulo na etapa que poderá causar estragos, em muitos casos irremediáveis.
Finalizo esse pequeno texto como uma chamada a
reflexão e alerta para que não antecipemos nenhum processo de alfabetização que
interfira na esfera da educação infantil e seus pressupostos teóricos e
dinâmicos que privilegia uma atmosfera lúdica, interativa, de convivência e autoconhecimento,
ou seja, eixos sintáticos que fornecem a necessária solidez para um
desenvolvimento educacional estável e eficaz, sem os vários processos de
dificuldades e ineficiência que, provavelmente, defluem desses descaminhos e
precipitações metodológicas e pedagógicas. SDG.
Dr
Marcus King Barbosa – Psicanalista Clínico, Psicoterapeuta
Integratista, Filósofo, Neuropsicólogo e Acadêmico de Pedagogia
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