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A comunidade que Jesus não sonhou – Jo 8.1-11

A unidade textual que quero dar atenção é marcada por um dos inúmeros embates de Jesus com os representantes das facções religiosas que compunham o judaísmo. Essas lutas renhidas de Cristo não era fruto do fato de ser ele polemista amante das pelejas dialéticas, muito pelo contrário, era resultado de seu compromisso messiânico e redentivo com a verdade (aletheia) e compaixão pelos vilipendiados e esmagados existencialmente por toda aquela parafernália religiosa sufocante. No caso em espécie, no texto em questão trazem a ele uma mulher flagrada em adultério. Não sei por que carga d’água o adúltero também não estava. O fato é que eles interpelaram Jesus no sentido de sua posição quanto o fato concreto, aplicava se a lei (nómos) de Moisés e sentenciava a mulher ao apedrejamento ou a sua ‘nova’ Lei do amor e a perdoava deixando-a sair incólume?

 Esse era o pano de fundo da controvérsia, o dilema latente. É importante ressaltar que essa atitude desses líderes carcomidos pelo legalismo estério não era por amor a verdade, lei ou coisa que o valha, mas sim pelo motivo escuso de enredar Cristo em seu próprio discurso para fundamentar uma acusação e posterior condenação contra ele. Isto é, mal caratismo mesmo e deslavado! A resposta de Cristo exibiu, encartou na moldura da História o porquê ele é o nosso salvador. Ele remete-os a uma viajem a suas próprias consciências carregadas e lá sob seu olhar vigilante e imparcial, eles contemplaram o absurdo daquela posição acusadora.

             Nesse flagrante delito, açoitados pelas duras criticas de suas consciências aflorou se a fragilidade de suas biografias existenciais e então foram deixando rapidamente aquele local de autovergonha e autocondenação. Em contraste aquele que podia se manter de pé face tal minucioso escrutínio de sua consciência e podia ficar firme diante de seu tribunal, aquele que podia ainda transcender o que dizia Juvenal: A maior condenação do culpado é nunca ser absolvido no tribunal de sua consciência. Não julgou, nem condenou, mas perdoou, restaurou e amou.

            Essa ação completamente graciosa de Cristo é em si mesma uma condenação a qualquer tipo de comunidade que utilize seu nome, e, ao mesmo tempo, fornece tópicos para uma construção positiva, afirmativa do que não seria a comunidade de seus sonhos.

Jesus não sonhou com uma comunidade preconceituosa (3-4)

Fica patente o preconceito presente no comportamento dos acusadores por meio do juízo parcial que se manifesta na ausência do homem, do outro agente ativo no pecado do adultério, visto que nesse caso o dolo forcosamente é compartilhado tendo que se falar de co-dolo, mas estranhamente o personagem masculino em nenhum momento é citado. Dessa maneira o enunciado do discurso acusatório: “Uma  mulher surpreendida em adultério ” vem eivado, carregado de uma profunda e deletéria preconceituosidade dos falantes tão tristemente comum que da enjoou.

Daí que se dizer comunidade cristã e agasalhar em seu seio qualquer tipo de preconceito é um contrassenso dos mais bizarros e uma atitude espiritualmente perigosa como adverte Tiago: 9 se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo argüidos pela lei como transgressores.  10 Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos.  11 Porquanto, aquele que disse: Não adulterarás também ordenou: Não matarás. Ora, se não adulteras, porém matas, vens a ser transgressor da lei.  12 Falai de tal maneira e de tal maneira procedei como aqueles que hão de ser julgados pela lei da liberdade.  13 Porque o juízo é sem misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia. A misericórdia triunfa sobre o juízo.(Tg 2.9-13).

                 A questão do preconceito é que ele não leva em conta o contexto existenciário que o sujeito está inserido, como destacou Ortega y Gasset: O homem é o homem e sua circunstancia. Não avalia a singularidade do ato, sua assinatura existencial inimitável e irrepetível, que impõe uma abordagem na mesma condição. O preconceituoso não quer saber da verdade real do outro, mas se contenta com uma pseuda-verdade, uma realidade aparente para emitir seu juízo, decretar sua sentença.

Jesus não sonhou com uma comunidade insidiosa (3,5)

                Notem o crepitar de fúria na acusação! Vejam como essa turba de religiosos trataram essa pecadora. Agora contraste com a posição e a maneira de Jesus, que diferença gritante! Qual o elemento diferenciador? A graça, o amor e a compaixão com que Cristo olhava o ser humano em sua desventura e fragilidade.

Comunidade que pega pedras, que exige linchamento, que pede que desça fogo e queime, pode ser uma comunidade inquisitória, mais jamais igreja de Jesus. Ainda mais esquecem do pertinente doutrinamento de Kant em suas máximas que estabelece que o máximo de justiça é o máximo de iniquidade. De fato, a igreja de Cristo não persegue, não se movimenta pela mecânica do ódio e do ressentimento, mas distante disso pelo combustível do amor, da aceitação e da misericórdia.

                 Líderes que pedem a cabeça, concílios que desconstroem biografias se assemelham mais com conciábulos de pequenos hitleres do que pastores da nova aliança. Isso fica explicito na censura que Jesus fez a Tiago e João: “53 Mas não o receberam, porque o aspecto dele era de quem, decisivamente, ia para Jerusalém.  54 Vendo isto, os discípulos Tiago e João perguntaram: Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para os consumir?  55 Jesus, porém, voltando-se os repreendeu e disse: Vós não sabeis de que espírito sois.  56 Pois o Filho do Homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las. E seguiram para outra aldeia.” (Lc 9.53-56)

Jesus não sonhou com uma comunidade alienada de si mesma e sua real condição diante de Deus (7,9)

            Vejam o processo de absoluta alienação desses acusadores exposto por Jesus. Como homens pecadores poderiam agir daquela forma? Com aquela voracidade? Apenas estando muito alheio a sua condição espiritual de pecador. É inconcebível para uma comunidade que se interpreta continuadora da obra de Jesus um compromisso pré-julgador ou mesmo acusatório a quem quer que seja até mesmo quem se encontre em condição de pecado explicito em semelhança do da mulher adúltera. Por quê? Por que pecadores não possuem legitimidade para julgar pecadores, simplesmente porque não há gradação de pecados. Por isso o mestre da Galiléia pontificou que não deveríamos julgar para não sermos julgados! Contudo, o que vemos nos bastidores, nas esquinas é julgamento sumario sem apelação e clemência, atenuantes ou coisa equivalente mais parecido com um tribunal de exceção!

             Pecado como processo de colisão com a vontade explicitada de Deus constitucionalmente tem a mesma valoração material. O pecado independente de sua repercussão social é como afirmou R.C.Sproul: um ato de traição universal contra Deus. Ou seja, os pecados grosseiros e menos palatável ao gosto público são da mesma natureza essencial que os ‘menores’ e mais socialmente degustativos! Foi o que Cristo demonstrou com a maestria que lhe era peculiar quando disse: “quem não tiver pecado atire a primeira pedra”. Paulo é particularmente claro: “22 justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que crêem; porque não há distinção,  23 pois todos pecaram e carecem da glória de Deus,” (Rm 3.23).E essa qualidade existencial de não justos ( até porque a justiça que recebemos não é nossa mais de Cristo), por ser pecador onticamente tem uma eficácia vinculativa erga omnes (para todos) sem distinções de qualquer que seja a natureza.


            Concluo assentando que muitas comunidades nessa modernidade liquida, se percebe comunidade de Jesus, na verdade estão longe de ser. Esse erro de avaliação é subproduto da tentativa de legitimação por via da tarefa, das realizações, do numerário, da performance, da tradição, do pedigree, dos milagres, sobrenaturalismo, da ortodoxia, enfim. E não pelo que realmente foi divinamente celebrado (e basta prestar verdadeira atenção ao discurso de Jesus), o elemento avaliador per excellece, a pedra de toque inconfundível – as relações com o outro, que é nosso próximo. Pense Nisto!

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