A unidade textual que quero dar
atenção é marcada por um dos inúmeros embates de Jesus com os representantes
das facções religiosas que compunham o judaísmo. Essas lutas renhidas de Cristo
não era fruto do fato de ser ele polemista amante das pelejas dialéticas, muito
pelo contrário, era resultado de seu compromisso messiânico e redentivo com a
verdade (aletheia) e compaixão pelos
vilipendiados e esmagados existencialmente por toda aquela parafernália
religiosa sufocante. No caso em espécie, no texto em questão trazem a ele uma
mulher flagrada em adultério. Não sei por que carga d’água o adúltero também
não estava. O fato é que eles interpelaram Jesus no sentido de sua posição
quanto o fato concreto, aplicava se a lei (nómos)
de Moisés e sentenciava a mulher ao apedrejamento ou a sua ‘nova’ Lei do amor e
a perdoava deixando-a sair incólume?
Esse era o pano de fundo da controvérsia, o
dilema latente. É importante ressaltar que essa atitude desses líderes carcomidos
pelo legalismo estério não era por amor a verdade, lei ou coisa que o valha,
mas sim pelo motivo escuso de enredar Cristo em seu próprio discurso para
fundamentar uma acusação e posterior condenação contra ele. Isto é, mal
caratismo mesmo e deslavado! A resposta de Cristo exibiu, encartou na moldura
da História o porquê ele é o nosso salvador. Ele remete-os a uma viajem a suas
próprias consciências carregadas e lá sob seu olhar vigilante e imparcial, eles
contemplaram o absurdo daquela posição acusadora.
Nesse flagrante delito, açoitados pelas duras
criticas de suas consciências aflorou se a fragilidade de suas biografias
existenciais e então foram deixando rapidamente aquele local de autovergonha e
autocondenação. Em contraste aquele que podia se manter de pé face tal
minucioso escrutínio de sua consciência e podia ficar firme diante de seu
tribunal, aquele que podia ainda transcender o que dizia Juvenal: A maior
condenação do culpado é nunca ser absolvido no tribunal de sua consciência.
Não julgou, nem condenou, mas perdoou, restaurou e amou.
Essa
ação completamente graciosa de Cristo é em si mesma uma condenação a qualquer
tipo de comunidade que utilize seu nome, e, ao mesmo tempo, fornece tópicos
para uma construção positiva, afirmativa do que não seria a comunidade de seus
sonhos.
Jesus não sonhou com uma comunidade preconceituosa (3-4)
Fica patente o
preconceito presente no comportamento dos acusadores por meio do juízo parcial
que se manifesta na ausência do homem, do outro agente ativo no pecado do
adultério, visto que nesse caso o dolo forcosamente é compartilhado tendo que
se falar de co-dolo, mas estranhamente o personagem masculino em nenhum momento
é citado. Dessa maneira o enunciado do discurso acusatório: “Uma mulher surpreendida em adultério ” vem eivado,
carregado de uma profunda e deletéria preconceituosidade dos falantes tão
tristemente comum que da enjoou.
Daí que se
dizer comunidade cristã e agasalhar em seu seio qualquer tipo de preconceito é
um contrassenso dos mais bizarros e uma atitude espiritualmente perigosa como
adverte Tiago: “9 se, todavia,
fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo argüidos pela lei como
transgressores. 10 Pois
qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de
todos. 11 Porquanto, aquele
que disse: Não adulterarás também ordenou: Não matarás. Ora, se não adulteras,
porém matas, vens a ser transgressor da lei.
12 Falai de tal maneira e de tal maneira procedei como
aqueles que hão de ser julgados pela lei da liberdade. 13 Porque o juízo é sem
misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia. A misericórdia
triunfa sobre o juízo.”
(Tg 2.9-13).
A questão do preconceito é que ele não leva em
conta o contexto existenciário que o sujeito está inserido, como destacou
Ortega y Gasset: O homem é o homem e
sua circunstancia. Não avalia a singularidade do ato, sua assinatura
existencial inimitável e irrepetível, que impõe uma abordagem na mesma
condição. O preconceituoso não quer saber da verdade real do outro, mas se
contenta com uma pseuda-verdade, uma realidade aparente para emitir seu juízo,
decretar sua sentença.
Jesus não sonhou com uma comunidade insidiosa (3,5)
Notem
o crepitar de fúria na acusação! Vejam como essa turba de religiosos trataram
essa pecadora. Agora contraste com a posição e a maneira de Jesus, que
diferença gritante! Qual o elemento diferenciador? A graça, o amor e a
compaixão com que Cristo olhava o ser humano em sua desventura e fragilidade.
Comunidade que
pega pedras, que exige linchamento, que pede que desça fogo e queime, pode ser
uma comunidade inquisitória, mais jamais igreja de Jesus. Ainda mais esquecem
do pertinente doutrinamento de Kant em suas máximas que estabelece que o máximo
de justiça é o máximo de iniquidade. De fato, a igreja de Cristo não persegue,
não se movimenta pela mecânica do ódio e do ressentimento, mas distante disso
pelo combustível do amor, da aceitação e da misericórdia.
Líderes que pedem a cabeça, concílios que
desconstroem biografias se assemelham mais com conciábulos de pequenos hitleres
do que pastores da nova aliança. Isso fica explicito na censura que Jesus fez a
Tiago e João: “53 Mas não o
receberam, porque o aspecto dele era de quem, decisivamente, ia para
Jerusalém. 54 Vendo isto, os discípulos
Tiago e João perguntaram: Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para
os consumir? 55 Jesus, porém,
voltando-se os repreendeu e disse: Vós não sabeis de que espírito sois. 56 Pois o Filho do Homem não veio para
destruir as almas dos homens, mas para salvá-las. E seguiram para outra
aldeia.” (Lc 9.53-56)
Jesus não sonhou com uma comunidade alienada de si mesma e
sua real condição diante de Deus (7,9)
Vejam o
processo de absoluta alienação desses acusadores exposto por Jesus. Como homens
pecadores poderiam agir daquela forma? Com aquela voracidade? Apenas estando
muito alheio a sua condição espiritual de pecador. É inconcebível para uma
comunidade que se interpreta continuadora da obra de Jesus um compromisso
pré-julgador ou mesmo acusatório a quem quer que seja até mesmo quem se
encontre em condição de pecado explicito em semelhança do da mulher adúltera.
Por quê? Por que pecadores não possuem legitimidade para julgar pecadores,
simplesmente porque não há gradação de pecados. Por isso o mestre da Galiléia
pontificou que não deveríamos julgar para não sermos julgados! Contudo, o que
vemos nos bastidores, nas esquinas é julgamento sumario sem apelação e
clemência, atenuantes ou coisa equivalente mais parecido com um tribunal de
exceção!
Pecado como processo de colisão com a vontade
explicitada de Deus constitucionalmente tem a mesma valoração material. O
pecado independente de sua repercussão social é como afirmou R.C.Sproul: um ato de traição universal contra Deus.
Ou seja, os pecados grosseiros e menos palatável ao gosto público são da mesma
natureza essencial que os ‘menores’ e mais socialmente degustativos! Foi o que
Cristo demonstrou com a maestria que lhe era peculiar quando disse: “quem não tiver pecado atire a
primeira pedra”. Paulo é particularmente claro: “22 justiça de Deus mediante a
fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que crêem; porque não há
distinção, 23 pois todos pecaram e
carecem da glória de Deus,” (Rm 3.23).E essa qualidade existencial de não justos ( até
porque a justiça que recebemos não é nossa mais de Cristo), por ser pecador
onticamente tem uma eficácia vinculativa erga omnes (para todos) sem distinções
de qualquer que seja a natureza.
Concluo
assentando que muitas comunidades nessa modernidade liquida, se percebe
comunidade de Jesus, na verdade estão longe de ser. Esse erro de avaliação é
subproduto da tentativa de legitimação por via da tarefa, das realizações, do
numerário, da performance, da tradição, do pedigree, dos milagres,
sobrenaturalismo, da ortodoxia, enfim. E não pelo que realmente foi divinamente
celebrado (e basta prestar verdadeira atenção ao discurso de Jesus), o elemento
avaliador per excellece, a pedra de toque inconfundível – as relações com o
outro, que é nosso próximo. Pense Nisto!
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