A
doutrina da predestinação (ploorismos)
foi e será uma temática que sempre produzirá muita celeuma. Infelizmente seu
ensino sempre imprimiu um tônus gravoso de beligerante divergência no seio da
cristandade e entre seus maiores vultos, criando escolas teológicas
visceradamente antagônicas (agostinianos, pelagianos, calvinismo, arminianismo
ou remostrante).
Para alguns, suas supostas
incoerências e terríveis implicações, tais como: anulação da responsabilidade
humana, comprometimento do livrearbítrio, autoria divina do pecado, enfim, são
de natureza tal que não podem ser superadas. Para esses predestinação é
doutrina do Diabo e heresia do inferno cheia do toda contradição.
Outros, entretanto, compreendem que
as tais altissonantes implicações e contradições atribuídas à predestinação, se
vistas de modo mais particular e detido, na verdade não passam de um grandioso
paradoxo, ou seja, uma junção de dois pensamentos que aparentemente se
manifestam como contraditórios, mas que de fato não são. No caso material, esse
paradoxo recai nas realidades aparentemente irreconciliáveis da soberania
divina sobre os atos contingentes dos seres humanos, notadamente os da salvação
e as livres escolhas humanas e seus de desdobramentos: a responsabilidade moral
e espiritual.
Reconhecendo as Tensões
Na verdade, independentemente da
posição que se tome frente o debate acerca dessa doutrina é impositivo, sob
pena de total obscurantismo intelectual reconhecer duas assertivas estruturais:
a primeira é a real tensão que a predestinação impõe sobre o honesto estudante da
palavra de Deus (não há espaço aqui para os meros sofistas debatedores).
Ao adentrar os meandros bíblicos que
apresentam esse ensino não dá pra dissimular o incômodo que surge diante de
indagações como: Será que temos livrearbitrio para tomarmos decisões, ou será
que de alguma forma todas às coisas já foram decididas por Deus? Até que ponto Deus
é soberano em relação a tudo o que ocorre no mundo e quais as linhas limítrofes
da responsabilidade do homem por seus atos? Tal desconforto que inapelavelmente
atinge todos os que se defrontam com esse magno tema constrói uma estrutura de
resistência granítica, um ponto sísmico de difícil categorização, pois, a
Bíblia faz afirmações sólidas tanto acerca do exercício soberano da ação de
Deus sobre a existencia humana (Ef 1.11; Rm 9.19). Como sobre a absoluta
responsabilidade dos homens em suas ações (Mt 16.27).
Esse modo dual de conceber o tema no
sentido da superação da própria dualidade arremessa os estudiosos da
predestinação em uma decisão binária, ora em rejeição como consumada heresia,
ora aceitação resignada do mistério divino da predestinação, orientação, que de
passagem é estimulada por João Calvino paladino da predestinação:
“E se é evidente que
da vontade de Deus depende que a uns seja oferecida gratuitamente a salvação e
que outro se lhes negue, daí nascem grandes e muitos árduos problemas, que não
é possível explicar nem solucionar se os fiéis não compreenderem o que devem
com respeito ao mistério da eleição e da predestinação” (Calvino,João, SP, 2007
VL 2, p.375).
A segunda assertiva preliminar é a
natureza inescapavelmente bíblica da predestinação. Isto é, independente da
posição que se assuma quanto à interpretação da predestinação é matéria de fato
que ela está dentro das afirmações textos-doutrinais da Revelação (Rm 8.29-30;
Ef 1.5,11; At 13.48; Pv 21.1; Es 7.27; Êx 3.21; Pv 15.21 entre outros). De fato,
muito do que se ouve sobre a predestinação é mais subproduto da interpretação
da mesma do que as afirmações que os autores bíblicos fizeram.
As Predestinações
Daí que do que foi estabelecido até
o momento fica claro que a predestinação é um tema de natureza
constitucionalmente escriturística, ao mesmo tempo também fica consignado que
temos versões sobre a predestinação que são veículos de um tipo de predestinacionismo
que nada tem haver com a predestinação bíblica, são sim, frutos de olhares
teológicos sobre esta, construindo vertentes conceituais polarizadas que designo
de ‘predestinações’. É obvio, e longe de qualquer disputa que muito do debate
atual sobre a predestinação está calcado nessas subdescrições teológicas
derivativas.
A Superpredestinação
A primeira dessas percepções
marcadamente ditadas pelo equivoco é a superpredestinação, ou como ficou
conhecida: dupla predestinação (praedestinatio
gemina). Conforme a lógica dessa argumentação, Deus de modo positivo decidiu
o destino salvifico dos homens determinando uns para o céu e positivamente
rejeitando outros, tornando assim certo sua ida para o inferno. Vejam o núcleo
dessa posição encartada na declaração de seu maior expoente, Chamamos
predestinação ao decreto eterno de Deus pelo qual determinou o que quer fazer
de cada um dos homens. Porque Ele não os cria com a mesma condição, mas antes
ordena a uns para vida eterna, e a outros, para a condenação perpetua (Calvino,2007, p.380).
O conteúdo e a forma dessa doutrina
são biblicamente delineados em textos da bíblia onde Deus é visto como o autor
absoluto tanto da salvação como da perdição do homem (Rm 9.19-24; Sl 115.3; Pv
16.4; Is 10.15; 45.9; Jr 18.6 entre outros). O problema aqui é que esses textos
não abordam a predestinação em sentido estrito, mas tratam da soberania (superomnia) absoluta de Deus sobre os
destinos da humanidade por ele criada em sentido amplo, lato, visto que tanto a
salvação como a perdição de suas criaturas não acontecem fora do centro
gravitacional da sua vontade soberana, quer em sentido comissivo (comissii), quer em sentido permissivo,
pois, em todas estas coisas à vontade e o poder de Deus também se tornam
manifestos e sua soberania absoluta é revelada (Bavinck, 2012, p.403).
É decisivo compreender, que
conquanto, a soberania, decreto, conselho, providencia, eleição e predestinação
se relacionem de modo mútuo dependente, elas enquanto realidades tópicas são
fenômenos distintos. De maneira que a predestinação está contida nos decretos e,
por conseguinte os decretos na soberania de Deus como a superestrutura que a
tudo engloba. Não considerar isso, é que leva os signatários da dupla predestinação
vê-la provada nos textos em questão. Além disso, a bíblia atribui a reprovação
humana, no sentido de sua gênese não há uma determinação positiva de Deus, mas
ao pecado do próprio homem (Rm 1.18-32;
3.9-23; Jr 23.9-12; Ef 2.1-3; Rm 6.23 entre outros), nesse particular colho as
achegas do teólogo holandês Herman Bavinck como descrito em sua opus magna, A Dogmática Reformada:
“Inteiramente errada,
portanto, é a noção de que o conselho de Deus em geral e o decreto da
reprovação em particular são uma só decisão nua e crua da vontade divina a
respeito de destino eterno de uma pessoa. É errado conceber o decreto como se
ele apenas determinasse o fim de uma pessoa e a forçasse nessa direção
independente do que ela fizer” (Bavinck, Herman, SP, 2012, VL 2, p.406).
Por outro lado, quando vista de
maneira nuclear a predestinação como via de expediente instrumental do plus
divino está diretamente relacionada aos eleitos de Deus e o modus operandis da redenção destes, como
bem nos apresenta Paulo: “4 assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do
mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor 5 nos predestinou para ele, para a
adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua
vontade,”
(Ef 1.4-5). Vejam, que o apostolo particiona a eleição ( eklégomai) como “declaração
definitiva de Deus” concernente a fé em Cristo (A.T. Robertson, p.596)), da
predestinação, no sentido em que torna esta viabilizadora dos objetivos
daquela. A forma como Paulo enxergava a predestinação, desabona qualquer
interpretação que tente incluir nela o ato positivo, comissivo da reprovação,
pois, no seu modo de encarar, ela é agencia proficiente da formação (symmórphous) de Cristo no eleito, desta
maneira uma política executiva de Deus completamente afirmativa: “28 Sabemos que
todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são
chamados segundo o seu propósito. 29 Porquanto aos que de antemão
conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a
fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.”
(Rm 8.28-29). Portanto, não agasalha um agir divino que diretamente reprove baseado
no simples ato de reprovar, assim se expressou Bavinck quanto a esse pensamento:
“Um problema final é
que ele faz que a punição eterna dos réprobos seja um objeto da vontade divina
do mesmo modo e no mesmo sentido que a salvação eterna dos eleitos e que, além
disso, faz do pecado, que conduz à punição eterna, um meio, do mesmo modo e no
mesmo sentido que a redenção em Cristo é o meio para salvação” ” (Bavinck,
Herman, SP, 2012, VL 2, p.396).
.
A dupla predestinação é uma excrescência
interpretativo-teológica porque inevitavelmente sequestra da predestinação como
esboçada na palavra de Deus seu lugar próprio de estabilizadora e garantidora
do plano redentivo, do sistema da salvação, pois, esta se bem compreendida
determina o destino do eleito nas mãos da criatividade divina por via da
autodeterminação deste, ou seja, sua liberdade finita.
A predestinação metafísica
Outra apresentação da predestinação
que em todos os sentidos é arbitrária em sua forma e precária em seu conteúdo,
engrossando assim o coro das ‘predestinações’ é aquela que determina sua fonte,
seu nascedouro numa deliberação divina antes da criação ou mesmo a queda.
Essa posição foi consignada na
história da teologia como supralapsarianismo. Essa corrente do predestinismo
foi magistralmente definida pelo afamado teólogo de Princeton em sua Teologia Sistemática, Charles Hodge:
“Segundo esse ponto
de vista, Deus, a fim de manifestar sua graça e justiça, selecionou dentre
homens criáveis (ou seja, dentre os homens a serem criados) a certo número como
vasos de misericórdia, e a outros como vaso de ira. Na ordem do pensamento, a
eleição e a reprovação precedem o propósito de criar e de permitir a queda. A
criação tem como fim a redenção. Deus cria uns para serem salvos, e outros para
serem perdidos. Este esquema recebe o nome de supralapsariano porque pressupõe
que os homens como não caídos, ou antes, da queda, são os objetos da eleição
para vida eterna, e de preordenação para morte eterna” (Hodge, Charles, SP,
2001, p.719).
Exatamente nesse ponto arejado por
Hodge da atuação predestinativa de Deus pré-temporal e pré-queda (lapso) que reside o ponto nevrálgico de
comprometimento do sistema, onde a conta, por maior esforço que empreendam seus
proponentes não fecha. Não fecha porque não leva em consideração o caráter
altamente retoricizado, hiperbólico da argumentação paulina sobre a
predestinação. Note bem, não que ela em si fosse para ele objeto de exibição
retórica, mas que ao utilizar-se de expressões do tipo: “Antes da fundação do
mundo” Paulo estava retoricamente assinalando não a condição ultratemporal da
predestinação, como se ela não fosse concebida no tempo e administrada na
história; ao contrário, a realidade desta na mente divina, no seu plano. Não há
uma predestinação metafísica, mas ela nasce e contingenciasse no universo
empírico da experiência dos falantes como ato singularíssimo que não permite
nenhum álibi, como destacou François Turretine:
“Aqueles que se põem
antes da queda (supra lapsum) ou da criação, para determinar o objeto da
predestinação, creem que vários decretos que são concebidos por nós acerca do
estado do homem devem ser organizados de tal modo que o decreto da
predestinação preceda ao da permissão da queda. Acreditam que Deus contemplou a
manifestação de sua gloria no exercício da misericórdia e da justiça quanto à
condenação dos homens antes de haver contemplado a criação do homem ou a
permissão de sua queda (...) embora essa ordem nada contenha de absolutamente
repulsivo ao fundamento da salvação e da analogia da fé (e tem agradado grandes
homens e pessoas que merecem o bem-querer da igreja), varias objeções impedem
sua aceitação” (François, Turretine, SP, 2011, VL 1, p.532).
Portanto, um ensino que propague uma
predestinação in abstrato que nada se importe com o estado alienado da raça
humana, não pode prosperar em sentido algum, visto que está eivado de todo tipo
de praga, sendo a pior delas a autoria divina, não apenas do pecado como das
desventuras humanas, ou seja, a caixa de Pandora não foi aberta por Adão, mas
pelo próprio Deus, o que é sem dúvidas uma caricatura e conscurpação da personalidade
divina como salientou doutor Hodge:
“Uma objeção ao
sistema supralapsario relaciona-se ao fato de que ele é inconsistente com a
exibição bíblica do caráter de Deus. Ele é declarado como Deus de misericórdia
e de justiça. Mas não é compatível com esses atributos divinos que os homens
sejam predestinados à desgraça e à morte eterna como inocentes, ou seja, antes
que houvessem apostatado de Deus. Se são deixados de lado e predestinados à morte
por seus pecados, isso se deveria ao fato de que, na predestinação, eles são
considerados criaturas culpadas e apostatadas” (Hodge, Charles, SP, 2001, p.722).
Predestinação uma nova olhada
Está além de qualquer contestação
que a atmosfera de repulsa à doutrina da predestinação por parte do público
mais leigo é variante da mescla, do mix do discurso academicista árido e
impolífero, da veiculação de versões deturpadas sobre a predestinação e, claro,
dos problemas de Ego, sofridos pelo pecador caído ao ser sumariamente retirado
dos holofotes da atenção, no que concerne a sua salvação por parte dessa
doutrina.
Do ponto de vista das abordagens
distorcidas da predestinação seu enorme mal reside no fato de não enfatizar os
aspectos práticos que a destacam no todo orgânico da salvação (soteria) como meio de deflagração da
onipotência divina, conduzindo pecadores redimidos à glorificação máxima do
Deus Eterno (El Olam) ao estamparem
a plena imagem (imago) do santo
cordeiro de Deus, Jesus em suas vidas e relacionamentos. Ser predestinado nesse
prisma, não é ser violado em nossa integridade humana, mas sim a garantia executivodivina
de sermos efetivamente salvos na existencia, da existencia para a eternidade
(Jd 1.24-25).
Daí que nessa forma de discernir a
predestinação, falar dela não é, portanto, falar de agressão ao bem jurídico da
liberdade humana, ao contrário é a efetivação real dessa liberdade (Rm 8.32-36).
Tratar da predestinação não é discutir sobre responsabilidade humana versos
soberania de Deus, mas sublinhar o soberano poder divino de construir uma nova humanidade
comprometida com os altos ideários da redenção como plano-piloto do reino dos
céus (Cl 3.12-17; Ef 4.17-24). Difundir o ensino da predestinação não é
arruinar a busca pela santificação em uma vida de humildade e fé, mas desvelar
o pano de fundo de tais processos (Hb 10.10-18).Proclamar a predestinação não é
desencorajar a missão da igreja, longe disso é enfatizar o Fiat divino que
impulsiona e sustenta essa gloriosa e inestimável missão (At 4.23-31;1.8; Mt
28.18-20). Soli Deo Gloria!
Comentários
Postar um comentário