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A EXPERIMENTAÇÃO DA EMPATIA BAKTINIANA COMO CONSTRUTOR RECONSTRUTIVO DA ÉTICA DO SUJEITO

A idéia da possibilidade da ética é tão antiga quanto à conduta humana. Grandes filósofos já se debruçaram sobre esse tema com vigor intelectual e agudeza de espírito; em certo sentido, podemos dizer que Sócrates foi o primeiro deles a efetivamente empreender um exame da ética, assim por dizer como filosofia moral através de sua maiêutica, penetrante e perturbadora nas praças e nas ruas; entretanto não foi o único, Platão, Aristóteles, Espinosa entre outros empreenderam análises e vastos tratados sobre esse magno tema.

         O que é ética? Podemos dizer que seja a ciência do comportamento, conjunto de regras sobre o agir adequado e moralmente correto. Sua terminologia é proveniente do latim éthica que por sua vez é oriunda do grego êthiká, em outras palavras, ética refere-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para conduta de seus membros (Chauí,1998, p.240).

         Visto por esse prisma a ética possui um pressuposto absolutamente vital que precisa ser discernido para sua apreensão factível que é a sua possibilitação apenas dentro do âmbito do tecido conectivo-empirico. Isto é, só pode haver uma ética concreta, se houver indivíduos que vivam em interação, precisando assim, de eticização para suas relações. É um verdadeiro despropósito uma ética abstrata ou existente apenas num plano idealístico, carente de forma e concretude, a verdadeira ética se dá como preconiza Bakhtin no todo material da ação, na sua vida concreta, no mundo vivido (lebenswelt) onde as ações são vividas pelo sujeito como ente responsável.

A NECESSIDADE DA ÉTICA NO MUNDO EM TRANSFORMAÇÕES

         A experimentação da ética se reveste de uma grande necessidade à luz das grandes conquistas humanas, do luminoso florescimento intelectual e a acerba fecundidade cientifica que tem caracterizado a nossa era. Ainda dos grandes avanços tecnológicos e da comunicação, que em sentido amplo tem produzido transformações viscerais, revoluções vertiginosas: Internet, inteligência artificial, explorações espaciais, clonagem, energia nuclear, entre outras.

         A contraface desse avanço está na posição inerme e impotente dessa mesma humanidade consciente de sua singularidade (menschheit) de dar respostas aos problemas sócias, étnicos e econômicos que se avolumam e a enfermam. A indagação é a seguinte: como com todos esses recursos o homem não tem conseguido mitigar as desigualdades brutais, os preconceitos gritantes, a violência insuportável, as guerras ideológicas ou sem ideologias que atualizam e presentificam novos holocaustos e segregações.

O QUE HÁ DE ERRADO COM A ÉTICA?

         Isso desloca a reflexão sobre a ética não para sua ontologia, mas para o seu problema, para a noção de que algo está realmente errado na própria ética, que há irreconciliavelmente um dilema, uma sina. Essa problemática da ética foi admiravelmente percebida pelo sociólogo polonês Zigmunt Bauman quando teorizou sobre a fluidez da sociedade moderna:

“Numa sociedade liquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades. As condições de ação e as estratégias de reação envelhecem rapidamente e se tornam obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las efetivamente” (BAUMAN, 2009, p.7)

         A questão da insuficiência da ética em resolver as mazelas explicitas do agir humano não encontra sua elucidação numa realidade fora dela mesma. Ao contrário, os elementos constitutivos de sua crise são identificados dentro de sua própria infraestrutura, não podendo em perspectiva alguma ser encontrada nas geografias externas dos agenciamentos históricos, de igual forma, entende Bakhtin ser a dinâmica interior prevalecente na ação lhe dando real sentido e previsão:

“A imagem externa da ação e a sua manifesta relação externa com os objetos do mundo exterior nunca são dados ao próprio agente, e se irrompem na consciência atuante acabam se tornando inevitavelmente um obstáculo, um ponto morto da ação. A ação proveniente de dentro da consciência atuante nega essencialmente a independência axiológica de todo o dado já existente, disponível, acabado, destrói o presente do objeto em prol do seu futuro interiormente previsto. O mundo da ação é o mundo do futuro interior previsto” (BAKHTIN, 2011, p.42)

         Dessa maneira a dificuldade da eticidade do homem, enquanto ser-aí no mundo está no próprio homem (suas leituras interiorizadas e sistema axiológico) como sujeito qualificado do agir, como sublinhou Bakhtin ao enfatizar a irredutível responsabilidade do sujeito dentro do mundo vivido.Desse modo a ética vista como enfermada no seu fundamento (themélios) sustentatório não tem  mínima condição de promover aquilo que é o cerne de sua existência própria, que são as interações empáticas no mundo dos homens.

A RECONSTRUÇÃO DA ÉTICA NO PROCESSO EMPÁTICO

         Não há na realidade ética numa ótica afirmativa sem uma profunda e linear pactuação empática de entes responsáveis. Não há horizontalidade criativa sem fusão de horizontes, referenciais cronotópicas e destino. Não se pode falar de postura ética, de responsabilidade ético-social sem entrar no drama do outro, sem sentir sua dor, sem reconhecer seu valor e singularidade, para Bakhtin o processo de maturação existencial do sujeito, só pode acontecer dentro dessa estrutura empático-simpática, como refluxo do dinamismo do excedente de visão:

“O excedente de visão é o broto em que repousa a forma e de onde ela desabrocha como uma flor. Mas para que esse broto efetivamente desabroche na flor da forma concludente, urge que o excedente de minha visão complete o horizonte do outro indivíduo contemplado sem perder a originalidade deste. Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, contemplar o horizonte dele com excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento” (BAKHTIN, 2011, p.23)

         Daí que há uma solução para o mal da ética se dá na reconstrução de seu universo fundante, o qual passa pela via da re-elaboração dos seus conteúdos matriciais-subjetivos. Esses conteúdos revisados na interioridade ganham projeção e densidade no mundo das coisas, dos homens, permitindo a presentificação da ética na dialogicidade dos eus, o fundir de perspectivas, que como destacou Martin Buber é a única forma do sujeito se constituir como tal, pois, o homem se torna Eu na relação com o tu. O face-a-face aparece e se desvanece, os eventos de relação se condessam e se dissimulam e é nesta alternância que a consciência do Eu se esclarece, aumenta cada vez mais. (BUBER, 2006:70). Só assim nesse diálogo permanente é que se pode pensar e falar verdadeiramente de ética.

Referencias bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2011.
BAUMAN, Zigmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro, Zahar, 2009.
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo, Centauros, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. Toward a Philosophy of the act. Austin, University of Texas Press, 1993.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo, Ática,1998.

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