A
disciplina (yatsar, paideía) é uma necessidade para a alma
redimida e evidencia da presença da salvação na vida do discípulo em sentido
concreto. Mas o que é disciplina? Pode-se dizer que ela é uma intervenção
corretiva de Deus por meio de várias agencias: ingerências diretas, atuação de Satanás,
o ministério disciplinar da igreja histórica, enfim, com o propósito de
corrigir, ajustar a caminhada dos redimidos na jornada da redenção (Hb 12.5-6).
Na verdade, a rigor, a disciplina tem o propósito de redefinir rota e colocar-nos
de volta no caminho estabelecido pelo nosso chamado divino e missional sendo
uma das fontes para a produção do arrependimento.
Marca da
Igreja
Nesse
sentido a disciplina funciona como uma marca indelével da natureza legítima e
saudável da igreja de Cristo. Isso era um pensamento que saturava a cabeça dos
reformadores e vemos que essa característica expositora da disciplina está
presentes em seus documentos confessionais e textos teológicos. Por exemplo,
vemos a disciplina ser descrita como marca da igreja na Confissão de Fé Belga: A
Igreja verdadeira é reconhecida pelas seguintes marcas (...) exercita a
disciplina na igreja para a correção e punição dos pecados. Em síntese, governa
a si mesma segundo a pura Palavra de Deus (As Três Formas de Unidade das
Igrejas Reformadas, Recife, PE, CLIRE, 2016).
De fato,
a disciplina é um treinamento divino visando a maturidade e um testemunho de
filiação e santidade. Portanto, sem a disciplina é impossível aquilatar o valor
do testemunho histórico da igreja, daí porque sua necessidade, e a
imperatividade de seu exercício prático e experimental. Penso ser esse o
pensamento do autor de Hebreus ao tratar da disciplina dentro da analogia da relação
familiar entre um pai e um filho: “8 Mas, se estão sem essa correção, da
qual todos se tornaram participantes, então vocês são bastardos e não filhos. 9
Além disso, tínhamos os nossos pais humanos, que nos corrigiam, e nós os respeitávamos.
Será que, então, não nos sujeitaremos muito mais ao Pai espiritual, para
vivermos? 10 Pois eles nos corrigiam por pouco tempo, segundo melhor lhes
parecia; Deus, porém, nos disciplina para o nosso próprio bem, a fim de sermos
participantes da sua santidade” (Hb 12.8-10). Comentando esse texto
Warren W. Wiersbe destaca que a disciplina paternal
de Deus para com seus filhos é sinal inequívoco de seu grande amor: A correção
é prova do amor do Pai. Satanás deseja nos levar a crer que as dificuldades da
vida são um sinal de que Deus não nos ama, mas é justamente o contrário (Wiersbe
- 2022).
A
disciplina deve ser instrumentalizada para dentro de nosso interior saturando
emoções, sentimentos e pensamentos (Pv 23.12). Sem esse alcance aprofundado em
nós a disciplina não obterá êxito real, visto que ela não conseguirá corrigir nosso
comportamento nos ajustando ao princípio emanado da Palavra divina deixado
exteriorizado que não somos de verdade filhos (Hb 12.5-6).
As
formas divinas de disciplina
Quais
formas a disciplina de Deus assume na vida da comunidade espiritual? Primeiro
podemos dizer qua a disciplina se manifesta por meio de intervenções divinas que
geram a morte. Um exemplo deste tipo de atuação de Deus foi a disciplina de
Deus sobre a séria irreverência de Uzá ao tocar na Arca da aliança: 6 Quando
chegaram à eira de Nacom, os bois tropeçaram, e Uzá estendeu a mão e segurou a
arca. 7 A ira do SENHOR se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu por causa
disso.24 E ele morreu ali mesmo, ao lado da arca de Deus. (2 Sm 6.6-7;
1 Cr 13. 9-10). O comentarista Richard L. Pratt Jr. nos fornece uma vívida
narrativa desse evento:
À
medida que a procissão de Davi prosseguia rumo a Jerusalém, os bois tropeçaram
e a arca ia caindo ao chão. Numa reação automática, Uzá estendeu suas mãos para
a segurar. O texto não oferece nenhuma indicação de que Uzá tivesse agido de
má-fé. Contudo Deus se irou e o feriu, matando-o (Pratt Jr - 2008).
De sorte
temos um outro relato que retrata essa mesma eventuação envolvendo uma ingerência
disciplinadora de Deus gerando a morte física no meio da comunidade
histórica da aliança, agora na instrumentalidade do Espírito. Este registro se encontra
na narrativa lucana da morte de Ananias e Safira em Atos (At 5.1-11). Agora
quero trazer a colação um texto que ao mesmo tempo que relata essa ingerência
disciplinar de Deus anexa uma salutar elucidação. Esse texto é da lavra do
apóstolo Paulo, faz parte de uma das suas epístolas de gênero doutrinal e que
vai abordar a questão relacionada aos abusos dos coríntios na celebração da
ceia (1 Co 11.17-22). Entre vários princípios ali utilizados por Paulo, temos a
tese teológica de que muitas situações que estava acometendo aquela comunidade,
dentre elas a morte física eram frutos da disciplina de Deus para santificar
sua igreja: “28 Portanto, examinem-se antes de comer do pão e beber do
cálice, 29pois, se comem do pão ou bebem do cálice sem honrar o corpo de
Cristo,48 comem e bebem julgamento contra si mesmos. 30 Por isso muitos de
vocês estão fracos e doentes e alguns até adormeceram. 31Se examinássemos a nós
mesmos, não seríamos julgados dessa maneira. 32 Mas, quando somos julgados pelo
Senhor, estamos sendo disciplinados para que não sejamos condenados com o
mundo.” (1 Co 11.28-32). Aqui fica mais que evidente essa correlação,
esse nexo causal entre doenças e a própria morte física (os pecados para morte
presente na tradição joanina: hamartia pros thánatos
- 1 Jo 5.16) como agente disciplinares e a atuação divina punitiva. Sobre isso
escreveu Gordon G. Fee: Provavelmente a profusão de enfermidades e mortes
que recentemente os atingiu esteja aqui sendo entendida como expressão de juízo
divino sobre a comunidade toda (Fee-2019).
A
disciplina e os seres demoníacos
Outra
forma de Deus disciplinar sua igreja está na atuação dos seres demoníacos,
sobretudo, em questões envolvendo a exclusão (1 Tm 1.20; 1 Co 5.1-13). No caso em Corinto o fato envolvia um sério
drama familiar moral, Paulo como forma de disciplina permite que a proteção espiritual
que envolve todos os que estão no âmbito da igreja como seus membros fosse
retirada e Satanás pudesse atuar sem restrições (termo paradoûnai raiz
paradídõmi: infinitivo aoristo que implica em ser entregue por
um tempo indeterminado mais completo em relação ao propósito): “3 Apesar
de eu estar ausente fisicamente, estou presente em espírito, e já julguei quem
praticou tamanha insolência, como se estivesse presente. 4 Ora, quando vos
reunirdes em o Nome do Senhor Jesus, e eu estando convosco em espírito, diante da
presença do poder de nosso Senhor Jesus, 5 entreguem esse homem a Satanás, para
que a carne dessa pessoa seja destruída, mas seu espírito seja salvo no Dia do
Senhor” (1 Co 5.3-5). Igualmente na situação envolvendo as blasfêmias
de
Himeneu
e Alexandre a mesma entrega (parédõka raiz paradídõmi: indicativo
aoristo) ao nível de atuação de Satã é realizada.
Desse modo,
temos aqui nesses dois textos duas verdades teológicas preciosas, a primeira é
que estar no corpo da comunidade espiritual de modo ativo e dinâmico fornece
uma barreira de proteção que impede investidas brutais dos demônios. Segundo
que a disciplina em forma de exclusão pode desencadear um terrível mau sobre o membro
excluindo (o poder das chaves do reino Mt 16.19) importando em bem mais que apenas
uma sanção eclesiástica como muitos defendem. Isso deve nos levar a uma
aplicação importante, ou seja, a responsabilidade em se aplicar medidas
disciplinares sobre os membros. E aos membros o cuidado com a própria vida para
evitar sofrer punições dessa natureza. Sobre isso afirmou João Calvino:
Em
virtude de sermos recebidos à comunhão da Igreja e de permanecermos nela na
condição de que estamos sob a proteção e responsabilidade de Cristo, afirmo que
a pessoa que é afastada da Igreja está, de certa forma, entregue ao poder de
Satanás, porquanto se acha alienada e excluída do reino de Cristo (Calvino – 2003).
A
igreja e a disciplina
Encerrando
essa temática, temos a disciplina divina por meio da igreja em posição de agencia
disciplinar quando ela é acionada por algum irmão que foi vítima de uma pecado contra
si, depois desse irmão cumprir uma processo preliminar de confronto pessoal, depois
por intermédio de um corpo de testemunhas, por fim, se mantendo a situação leva
o caso a igreja que exerce o julgamento sobre o culpado que não aceitando a
admoestação e correção é punido disciplinarmente com a exclusão: “15 Se
um irmão pecar contra você, fale com ele em particular e chame-lhe a atenção
para o erro. Se ele o ouvir, você terá recuperado seu irmão. 16 Mas, se ele não
o ouvir, leve consigo um ou dois outros e fale com ele novamente, para que tudo
que você disser seja confirmado por duas ou três testemunhas. 17 Se ainda assim
ele se recusar a ouvir, apresente o caso à igreja. Então, se ele não aceitar
nem mesmo a decisão da igreja, trate-o como gentio ou como cobrador de
impostos.” (Mt 18.15-17). Notem que nessa instrução de Jesus há todo um
rito que antecede esse ato disciplinar definitivo é grave. Por quê? Porque Deus
espera que sua comunidade viva em harmonia e equilíbrio manifestando o poder e
a verdade do Evangelho. Quando essa paz é transtornada é o momento de se
corrigir e reestruturar a marcha. A disciplina eclesiástica não é vingança, nem
exibição pública de poder; ao contrário, se baseia na convicção de que o pecado
perverte a comunhão (koinonia) entre irmãos, e por consequência,
da comunidade e por fim da própria igreja com Deus, por isso ele deve ser
combatido e suprimindo do meio da comunidade e a medida instituída pela Palavra
é a disciplina. Mark Denver tratando dos textos bíblicos que lidam com a
disciplina eclesiástica pontoou:
Considerando
juntas todas estas passagens, vemos que Deus se interessa em que entendamos a
sua verdade e que a pratiquemos em nosso viver. Ele se interessa especialmente
em que vivamos juntos como cristãos. Todas as situações mencionadas nestas
passagens são, de conformidade com a Bíblia, áreas legítimas de nosso interesse
— áreas em que nós, como igreja, devemos exercer disciplina. (Denver – 2007).
Infelizmente nossas igrejas nem sempre levam
em conta a impositividade da disciplina como meio de regulação da vida relacional,
interativa da comunidade. Nem tão pouco levam a sério todo ritual instituído por
Cristo tornando muitas disciplinas totalmente descaracterizadas, perdem seu propósito
e legitimidade, em muitos casos, descambando para perseguições, abusos de
autoridade ou coisas piores.
Na
verdade, é urgente estabelecer protocolos claros e transparentes para a
aplicação da disciplina, a fim de evitar essas descaracterizações, perseguições
ou abusos de autoridade. Criar canais de comunicação abertos para que os
membros possam expressar preocupações ou relatar casos de disciplina inadequadas,
enfim.
Portanto,
concluo sublinhando que ao aplicar esses princípios aqui tracejados,
a igreja pode buscar uma abordagem mais teológica e assertiva em relação à
disciplina, promovendo a edificação e o fortalecimento da comunidade da fé.
Isso com certeza contribuirá para uma experiência eclesiástica mais autêntica e
alinhada com os princípios ensinados por Cristo. SDG.
Rev. Dr.
Marcus King Barbosa
Comentários
Postar um comentário