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Por que nascer do alto é necessário?

 

No encontro de Jesus com Nicodemus ele deixa evidente a absoluta necessidade que ele tinha de nascer celestialmente (genêthê anõthen). Segundo Jesus esse nascer espiritual era impositivo, algo como sine qua non que caracterizaria uma relação real com ele e a própria experimentação do ethos do reino (mal’kuth): “8 O vento sopra onde quer, você escuta o seu som, mas não sabe de onde vem, nem para onde vai; assim ocorre com todos os nascidos do Espírito.” (Jo 3.8). Mas por que o nascimento do alto é tão indispensável? Cristo nesse diálogo com o rabino Nicodemus responde a essa indagação com maestria invulgar e com louvor elucida os porquês da necessidade fundamental pela vivência do nascer celestial.

 

1.    Porque estamos falidos existencialmente

 

Jesus enuncia o grande problema de Nicodemus. Destaca que apesar de sua religiosidade, de sua ascensão financeira, de sua posição política farisaica, de ser um homem bem-sucedido, ele estava em uma situação totalmente comprometida do ponto de vista da existência. Sua condição era tão desesperadora que havia uma única esperança, uma nova existência, tão diferente em princípios e valores que só poderia ser de outra dimensão, ou seja, do céu. Ele precisa nascer do alto, do céu, do trono da graça, do Espírito: “3 Jesus respondeu: “Eu lhe digo a verdade: quem não nascer de novo,12 não verá o reino de Deus”. (...) 8 O vento sopra onde quer, você escuta o seu som, mas não sabe de onde vem, nem para onde vai; assim ocorre com todos os nascidos do Espírito.” (Jo 3.3,8). A pergunta importante aqui é essa experiencia era privativa de Nicodemus? Claro que não! Essa condição é lugar comum de todos os filhos de Adão. Essa falência existencial é característica constitutiva da raça humana, sublinha os efeitos noéticos da queda (Gn 3). A revelação designa isso de morte (mamôt, t’mutâ, mût, thánatos), que consiste na desobediência, na rebelião contra Deus, no egoísmo de viver para si, segundo os seus próprios padrões: “1 Ele lhes deu vida, quando vocês estavam mortos em suas transgressões e pecados, 2 nos quais vocês andaram noutro tempo, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência. 3 Entre eles também nós todos andamos no passado, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como também os demais.” (Ef 2.1-3). Steven M. Baugh salienta esse comprometimento existencial integral do ser humano quando nasce nesse mundo: Seres humanos, como filhos e filhas de Adão, entram no mundo espiritualmente mortos. Eles não têm inclinação ou capacidade de responder a Deus e nenhuma habilidade para agradar a Deus (Baugh – 2018). Seguindo esse caminho teológico o Doutrinal salienta sobre a falência existencial humana pós-queda: Por causa disso, todos nós nascemos com a natureza pecaminosa, escravos do erro e espiritualmente mortos (O Doutrinal: nossa crença ponto a ponto, São Paulo, SP, Editora Promessa, 2023).

Por conta dessa morte que simboliza a incapacidade espiritual e existencial humana, o nascimento do alto, a regeneração que é outro termo para essa experiencia, torna-se imprescindível, por isso Jesus asseverou que ela era necessária (deî) para Nicodemus. Jesus aborda essa regeneração, a denominando de ressurreição: “25 Mais uma vez, verdadeiramente vos afirmo: vem a hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão.” (Jo 5.25). Sem essa ressurreição não há nada, a existência é falida, sem vivacidade e futuro.

 

2.    Porque só entra no reino redimido que nasceu do alto

 

O reino de Deus pregado por Jesus que fazia parte da sua proclamação (Mt 4.17) do reino divino que seria inaugurado dentro da nova faceta da era redimida (olam habá). Esse reinado divino marcado pela manifestação dos último dias foi amplamente profetizado no velho testamento. Uma das abordagens desse reino foi apresentada por Daniel ao interpretar o sonho do rei Nabucodonosor: “44 No entanto, na época do governo desses reis, Elah, o Deus dos céus, estabelecerá um novo reino que nunca será destruído e que também não será dominado por nenhum outro povo. A soberania desse reino jamais será transferida a nenhum outro povo. Todavia, esse novo reino destruirá e exterminará todos esses outros reinos, e subsistirá para todo o sempre.” (Dn 2.44). Esse reinado divino foi inaugurado com a parousia (vinda) De Jesus, ele trata de uma nova maneira de Deus lidar com sua criação moral através de seu governo no íntimo, na consciência, no coração. Esse reinado só pode ser vivido se o homem caído for transformado no núcleo de sua identidade. O que justamente a regeneração realiza. Por isso Jesus afirmou a Nicodemus que ele não poderia nem ver ou entrar nesse reino sem nascer do alto: “5 Jesus respondeu: “Eu lhe digo a verdade: ninguém pode entrar no reino de Deus sem nascer da água e do Espírito” (Jo 3.5). E nascer dessa forma, não é possível aos seres humanos, não é um nascimento humano, carne é carne, esse nascimento é da lavra do Espírito é poder divino que gera a vida espiritual (zõe) que é a ferramenta que inserida dentro do interior humano o faz ressurgir. Esse reinado divino e seus valores e princípios era o material do kerigma pregado por Jesus e depois por seus apóstolos e sua comunidade (Jo 24.14). Paulo nos elucida os elementos desse reino: “17 Porque o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo. 18 Aquele que deste modo serve a Cristo é agradável a Deus e aprovado pelas pessoas” (Rm 14.17-18). Esses características que Paulo enunciou são frutos, resultados do no ser em Cristo produzido pela regeneração que Deus por amor e misericórdia tornou possível renovando integralmente (anakainõseõs) a identidade do homem (Tt 3.6-7).

E de fato, é fundamental o nascer do alto, do Espírito porque o reino de Deus é bem diferente do reino e governos humanos, há uma inversão de valores que torna impossível vivê-lo sem a dotação da vida espiritual. Penso que Hernandes Dias Lopes entendeu bem essa distinção entre esses reinos, o de Deus e o humano: No reino dos céus, o menor é o maior, e o mais humilde é o mais exaltado. O mundo valoriza a força, o poder, a riqueza, a soberba; mas, no reino de Deus, aquele que se faz pequeno é o maior. A pirâmide está invertida. O reino dos céus é um reino de ponta-cabeça (Lopes – 2019). Portanto, é mais que justo a advertência de Jesus a Nicodemus, ele não entendia nada do papel de Jesus ali, sua obra e nem ainda sua real condição.

3.    Porque só é espiritual quem nasceu do alto

 

Usamos o qualificativo espiritual para contrastarmos com carnal, religioso, humano, enfim. Espiritual seria o equivalente ao termo antigo piedade. É no sentido de uma experiencia profunda, pessoal, da lavra do Espírito, extraordinária que nos reportamos ao usar o termo espiritual aqui no texto. No diálogo de Jesus com Nicodemus ficou claro essa distinção entre a religiosidade trazido a reboque por Nicodemus e aquilo que ele estava ofertando em seu Evangelho e como resultado da obra do Espírito, ou seja, nascimento celestial. Jesus entendia que era irreproduzível a espiritualidade por meio de agenciamentos humanos, que ele vai denominar de carne (sárkos), carne só pode produzir carne, ela não pode produzir o espiritual, só o Espírito: “6 Os seres humanos podem gerar apenas vida humana, mas o Espírito dá à luz vida espiritual” (Jo 3.6). Penso que essa tradução da NVT foi excepcional, porque destaca que só podemos gerar aquilo que é humano, e esse é o âmbito que a religião pode chegar, ela não consegue passar disso. O que Jesus veio nos trazer por graça em sua nova aliança é transcendental, perpassa a linha limítrofe do humano e adentra o universo do celestial. Não é possível viver os espiritual sem o Espírito, sem a regeneração, nesse ponto somos passivos (genêthen: subjuntivo aoristo passivo: a melhor tradução deveria ser: ser nascido). Isso é bem inquietante, não acha? Saber que não estamos sob o domínio da regeneração, sofremos a ação, que ele não depende de nosso queres, desejar, que somos passivos nessa experiência. John Piper entendeu bem esse desconforto que a regeneração como obra monergética (uma única ação) de Deus produz em nós:

 

Não realizamos o novo nascimento, é Deus quem o realiza. Qualquer coisa espiritualmente boa que fazemos é resultado do novo nascimento, e não a causa dele. Isso significa que o novo nascimento não está em nossas mãos. Não está sob nosso controle. Assim, ele nos confronta com nossa incapacidade e absoluta dependência de Alguém diferente de nós mesmos. (Piper – 2009).

 

Na verdade, pode ser fácil produzirmos uma imitação barata da espiritualidade fruto do nascer do alto, mas que vai ser intrinsecamente carnal, humana e por isso um mero simulacro. Entendo que isso aconteceu quando a comunidade espiritual foi reconhecida como cristianismo. O que entendemos hoje ser igreja, cristianismo são bem diferentes do que Jesus pensava e proclamou, tanto que durante muito tempo a igreja era chamada de:  – o povo do caminho.  Agora temos igrejas, mas que são nada mais, nada menos que obra do engenho humano, resquícios da imagem de Deus distorcida no homem, mas que ainda é suficiente para produzir o senso da divindade. De fato, a própria semente da religião é consequência disso. Mas isso é muito diferente da espiritualidade celestial que Jesus estava dizendo que Nicodemus deveria experimentar. O que o Espírito está dizendo que devemos experimentar agora. Paulo tratou disso ao denunciar a suposta espiritualidade dos coríntios: “1 Irmãos, não vos pude falar como a pessoas espirituais, mas como a pessoas carnais, como a crianças em Cristo. 2 O que vos dei para beber foi leite e não alimento sólido, pois não podíeis recebê-lo, nem ainda agora podeis, 3 porque ainda sois carnais. Visto que campeia entre vós todo tipo de inveja e discórdias, por acaso não estais sendo carnais, vivendo de acordo com os padrões exclusivamente mundanos?” (1 Co 3.1-3). Paulo denuncia esse grupo da igreja que se sentiam muito espirituais, mas na verdade eram dominados, vivem sobre os padrões da carne (sárkikos) entendendo essa expressão como debaixo do domínio da natureza humana caída, assim como Nicodemus, que provavelmente seria recebido e aplaudido como grande líder da igreja, mas que Jesus o via como carnal. Sobre essa tese William Barclay é de grande ajuda:

 

Para Paulo a carne significa muito mais que a mera parte física. Para ele significa a natureza humana separada de Deus, essa parte tanto física como mental do homem, que proporciona uma porta de entrada ao pecado, essa parte que responde ao pecado, que lhe dá uma oportunidade e lhe obedece. De modo que a falta que Paulo encontra nos coríntios não é que sejam de carne — todos os homens são de carne —, mas sim tenham permitido que esta parte inferior de sua natureza domine toda sua posição e suas ações (Barclay – 2008).

 

Nesse ponto dá para ter uma percepção clara do que é a espiritualidade que o Evangelho proclama (kerigma), ensina (didaskalos) e que é uma claro indicativo da presença ou não da regeneração. Não é talento (performance) não são resultados (pragmatismo), mas uma capacitação que brota da ingerência do Espírito nos dando uma nova superestrutura identitária. Por isso, o nascimento do alto é necessário, indispensável para aqueles que querem viver a existência que Jesus prometeu em seu Evangelho através de uma vida qualitativamente transformada (Rm 6.4-11; 2 Co 5.17) e por fim, uma existência glorificada (1 Co 15.36-54; Ap 21.5-7). SDG.

Rev. Marcus King Barbosa

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